terça-feira, 23 de setembro de 2008

(SOB A) LUZ DA LANTERNA

Solitário, tendo como extensão do seu corpo apenas a sua velha motocicleta Honda Custon ano noventa e cinco. Com ela deslizava no trecho do vão central da ponte, há setenta metros de altura, e na velocidade máxima permitida de oitenta quilômetros por hora, assim dava para observar lá embaixo a água do mar; mexida, suja e fétida, devido à putrefação dos manguezais próximos, fedor trazido pelo vento tépido e constante do mar. No mesmo instante no meio da baía, navegando vagarosamente, visualizara um velho barco rebocador, que, no esforço de aprumar um cargueiro em direção a barra aspergia pelos retornos dos motores mal regulados; vapor e uma fumaça negra obtida da queima do combustível, provavelmente adulterado, quase o envolvendo a cada aceleração, o que o fazia desaparecer alguns instantes. Mas lá ia ele, seguindo imponente singrando na água amarronzada e deixando um rastro de espuma espessa, derivada de um misto de óleos, algas mortas, gigogas e lixo.

No começo da subida da serra, de súbito, uma impaciência, uma angústia, o frescor no rosto, e o cheiro dos eucaliptos plantados na beira da estrada, disfarçava um pouco aqueles sentimentos, pois se fazia encher os pulmões de ar, qualidade “made in” país tropical. O sol foi esfriando-se vagarosamente também, e escondendo-se rápido no poente. E assim o dia passou despercebido. Tinha nascido com uma manhã clara e com céu limpo até o meio dia, mas repentinamente acinzentou depois se cobriu de nuvens negras que misturadas aos resquícios de vermelho do sol transformava-se numa coloração sombria, meio suja, tons sobre tons, num dégradé fúnebre. O tempo fechou em trevas combinando com a solidão da viagem. A escuridão se fez mais cedo, abraçou a noite sem que se notasse e um começo de chuva fria começara cair molhando a rua, que revestida de paralelepípedos. Pedras que umedecidas tornam-se muito escorregadias, causando um desconforto na pilotagem. O desconforto também era grande para o corpo, pois o frio e a chuva enfraqueciam o poder de aquecimento da roupa interna, a externa, de couro estava encharcada. Mesmo assim seguiu um pouco mais à frente, parando debaixo de uma frondosa amendoeira, estacionou a velha máquina, seu bem de estimação, uma guerreira. Apeou. O frio tinha se estabelecido por completo na serra, uma sensação perto do abaixo de zero grau, dava para sentir na alma, doía até os ossos.


Então, caminhou lentamente sem direção específica, procurava e esperava encontrar uma pousada, que fosse simples, mas aquecida e o mais rápido possível para o repouso do corpo, em frangalhos. Quando de repente, sentiu estar sendo seguido, ouviu passos não muito claramente, parecia vindo de baixo dos pés, isso mesmo do chão. Olhando a volta, também não viu ninguém, aliás, nada denunciava um espreitar de quem quer que fosse. Sozinho, com a imaginação flutuando, pensou; não há porque um descontrole emocional, mas o suor fluía a cada passo, e a cada outro que dava aumentava a sensação de estar sendo seguido, e o fez caminhar mais rápido. Afastou-se da calçada, passou a caminhar pela sarjeta, logo a seguir o medo o levou para o meio da rua, afastava-se cada vez mais da parte habitada. A iluminação da rua por ter lâmpadas de baixo lux não se propagava, e também por causa do nevoeiro e da chuva fina que não parava, dificultando a visibilidade, e por isso, não notara que já pisava na lama.


O trecho de rua calçada terminara lá atrás, o que a tornava mais escura, mais feia e lúgubre. Tinha as pernas desobedientes, empacaram num cruzamento, próximo de uma obra abandonada, parecia o fim do trajeto, cavaletes atravessados avisavam a proibição de passar. Diante do impasse, olhou para esquina, tentando encontrar um abrigo. E sob aquela iluminação fraca de cidade de interior notou que uma tampa de bueiro abria-se lentamente, estático, viu aquelas mãos pálidas, magras e envelhecidas empurrando a pesada tampa de ferro fundido, e de lá surgiu um vulto, vestido de uma roupagem negra e em desalinho, como se tivesse nascendo do chão, parecia levitar. De congelar. De paralisar mesmo. Mas num passe de mágica, quebrou-se toda essa imagem aterrorizante, um foco de luz de lanterna entrou pela retina quebrando o terror instalado na escuridão da noite. Foi quase uma tapa na cara. Em seguida, uma voz arrastada ofereceu ajuda.


- Está perdido? Precisa de ajuda? (tosse)O vulto se fez gente, era um velho funcionário municipal do departamento de águas e esgotos, e também vigia da cidade, que depois de uma inspeção noturna das galerias, saiu para fazer a sua ronda pela periferia. O motoqueiro fez o sinal da cruz e agradeceu por ser ele aquela aparição. Uma boa companhia, um amigo que fez-lo voltar à realidade. Respirou fundo, foi sendo possuído lentamente por um calor no corpo e um rubor nas faces. E da garganta ressequida pelo frio, e pela respiração antes ofegante, ouviu-se uma estridente gargalhada.
em: ANTOLOGIAS DE CONTOS FANTÁSTICOS - Vol. 17 - Câmara Brasileira de Jovens Escritores 10/2008

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