terça-feira, 7 de outubro de 2008

OS SIAMESES

Moravam numa pequena vila localizada numa região que outrora tinha sido zona rural. O bairro ficara populoso demais, pois se rendeu ao progresso devido à expansão industrial. Um plebiscito permitiu a instalação de várias fábricas de capital multinacional, mas o lugar não perdera aquele jeitinho de interior; ainda. Crescia rápido.
Estabeleceu-se um cabedal bom para a população, menos para os moradores mais idosos que desejavam sossego. Ao contrário dos jovens, estes contratados, por salário mínimo, uma fortuna para quem ganhava um décimo na lavoura ou como pedinte nas feiras. Com tanta euforia, tanto os velhos quanto os novos nem sentiram que praticamente o sítio geográfico onde moravam se modificara. O que antes área limítrofe era região inóspita, agora não mais, já havia praticamente se unido à da outra cidade, esta considerada subúrbio emergente, com diversão, bares, comércio farto, grandes avenidas, trânsito caótico e outras mazelas corriqueiras e aceitáveis.
Era lá que Dona Rosália e Sr. Astolfo faziam suas compras todo final de mês. Agora pela facilidade de acesso; todos os sábados. Para subsistência de um casal sem filhos não era muita coisa que precisavam comprar. Suas atenções eram focadas essencialmente para os tecidos, linhas, botões, debruns e passamanarias em geral. Materiais que precisavam estocar para manter o negócio do qual eram artífices. Para o sustento, tinham na própria residência um atelier, uma pequena confecção de roupas, etiqueta Geéle’S. O Sr.Astolfo costurava para os homens e os gays e Dona. Rosália para as mulheres e as lésbicas.
A relação deles com a clientela era uma coisa impressionante. Queridos pelos vizinhos, clientes e fornecedores, que mesmo depois de muitos anos de convivência, e pelo amor que demonstravam ter um pelo outro, não haviam chamado a atenção até mesmo dos amigos mais chegados. Não repararam que Dona Rosália... O seu corpo... Chamava mesmo a atenção era o seu aspecto corporal forte, vamos dizer assim; era possuidora de uma musculatura mais viril, muito mais que o próprio companheiro. Fora dos padrões para uma bela mulher daquela região, rural. Se talvez vivesse numa grande cidade, urbana, não seria notada, as academias de musculação dariam esse trato nela como dá há muitas mulheres e tão bonitas quanto ela.
Realmente, fora todos aqueles músculos, seus traços femininos são surpreendentes. Analisando bem hoje, o Sr. Astolfo era um homem de aparência também forte, porém com traços mais suaves. Intrigava. Porque não tiveram filhos?

Os siameses eram criados pelos dois, mas o gosto pelos felinos não era da Dona Rosália.
O luto ainda não terminou e Celina já dorme com Rosália na cama do casal. Os dois gatos siameses o casal cria-os até hoje em homenagem ao Sr. Astolfo.
Afinal, os dois foram homens muito felizes.

PONTO FIXO

Desde muitos anos vou e volto pela mesma avenida, trajeto obrigatório; de casa para o trabalho, do trabalho para casa.
O comércio que freqüento fica do lado oposto, depois da praça.
Diariamente antes de eu dobrar a rua transversal, na esquina em frente à praça; estática como se fosse uma pintura em tela viva, lá estava ela, sentadinha numa pequena caixa de pinus, destas que acondicionam e transportam frutas.
Ela era só uma menina, uma criança, com cerca de seis, sete anos, não mais. Nas mãos, outra caixa, esta de papelão cheia de balas, guloseima exposta à venda que ela oferecia a quem passasse por ali. Fazia isto somente com um olhar. Olhar cabisbaixo, lacrimoso, eu nem precisava fitar muito para sentir que ela era infeliz. As cores das guloseimas eram muito mais coloridas que de seu velho vestido, de manequim maior do que o seu corpinho, talvez ganho em doação de outra criança maior em tamanho e posses. Eu parava ali todos os dias, nossos olhares cruzavam, ela nada dizia, eu nada perguntava, pensávamos que éramos mudos. Pegava algumas balas e pagava com moedas em valor muito superior que o custo, e seguia o meu caminho. Não era esmola, pensava estar fazendo o meu papel, ajudar, isto é: comprando o que ela vendia, sem me preocupar quem era.
O meu olhar acostumou-se àquele quadro.
O tempo passou. Passou tão rapidamente como passa a areia entre os dedos, e na mesma velocidade, deve ter exaurido a vontade dela em vender balas. Um pouco mais, um véu criou-se entre a imagem e meus olhos. Também não era mais obrigatório eu passar por aquela avenida, mas por contumácia ou força do hábito que tivesse, mas persistia. Numa determinada tarde, meu olhar envelhecido ou viciado, nem percebeu que aquela menina, passara de casulo para libélula, ela já era uma mulher e eu nem notei. Desperto por essa metamorfose... Cumprimentei-a. Estática na mesma esquina ela permanecia. Sua resposta surpreendeu-me:
- Está a fim de um programa tio.
Lamentei não ter feito mais por ela antes.

sábado, 4 de outubro de 2008

O POETA NUNCA ESTÁ SÓ...

A sinfonia, a escultura, a pintura e a poesia. Arte, arte, arte e arte. O homem pensador, mediador das maravilhas, qual o compositor que ao dedilhar o poema eterniza-o na partitura. Nela o maestro lê, e a batuta diz o que fazer, e a melodia evolui na orquestra através das bocas, dos dedos, das mãos, dos pés. Do couro, das cordas, dos metais e das teclas, é o som, é o som.
O poeta não, ele é só, sem fanfarra, e mesmo assim consegue compor, bastando ele estar em sintonia com a sua musa, e ela nele. Isto é abstrato e real ao mesmo tempo. Absorto e só no seu canto. Ele canta, cala, chora e ri. Tem a sinfonia na vitrola, a escultura no pensamento e a pintura no olhar.

O poeta nunca está só, mas ninguém o vê. Para criação... Em suas mãos; apenas uma pena, um lápis, uma caneta ou o teclado. Processo é quase idêntico ao do escultor e do pintor que; quando com a sua modelo retratam o nu, despem-se da rudeza, e vestem-se do que vêem e ou do que sentem.

Mas o poeta, sim, este é um artista, não tem a musa em suas mãos, usa o seu pensamento como uma força centrípeta, e captura para junto de si a imagem dela, aí esculpi e pinta em versos, ela, a musa inspiradora, e não mais cessarão as poesias. Até na sua lápide deixará gravada a sua mensagem de amor.