sexta-feira, 27 de novembro de 2009

EM NOME DE QUEM?

Era véspera de um dia qualquer. O homem acordou cedo como de costume, dessa vez não quis sair de carro, deixou-o na garage. Atravessou o longo corredor, cumprimentou o porteiro, e saiu caminhando pela larga calçada de pedras portuguesas, muito comuns nos bairros de classe média alta. Na mão, uma pequena lista de convidados começada desde a noite da festa do ano passado, e que completara na noite anterior quando ficou acordado até altas horas. Uma prática de muitos anos. Gosta de comemorar festivamente o dia do seu aniversário, e para isso, sempre partilhava um jantar com um grupo seleto de amigos. No bolso da bermuda, outra lista, do cardápio, nada sofisticado; vinho e produtos de época, por serem mais frescos. Seguia sem pressa, o sol ainda morno deixava a caminhada agradável àquela hora da manhã. Tinha todo o dia para os preparativos, desde as compras dos alimentos e bebidas, até a arrumação do ambiente e a decoração das mesas. E por ser um exímio cozinheiro, ia também preparar as comidas, fazer tudo sozinho aumentava o prazer dele servir.
Antes de atravessar a primeira pista da alameda que o levaria ao shopping foi surpreendido por uma pequena mão que o puxou por uma das pernas da sua bermuda de linho claro, que ao contato, ficou logo suja na bainha.
Além de maltrapilha, as mãozinhas sujas, assim como os pezinhos descalços igualmente muito sujos, eram de uma criança miúda, magérrima, mas com um rostinho angelical. Não conseguiu dar nem mais um passo. Por longos segundos custou até a dizer alguma coisa. Mas o silêncio foi quebrado pela menina, talvez com não mais que meia dúzia de aninhos, olhos vivos, porém tristonhos, disfarçados pelo sorriso sincero saído da sua pequena boca, e que exibia com a graça de toda criança banguela uma falha de dois dentinhos de leite recém caídos.
Ainda segurando a bermuda e olhando por cima dos ombrinhos, perguntou ao homem se precisava de ajuda para atravessar a avenida. Aliás, uma das mais movimentadas do bairro, e que por ainda ser muito cedo não havia muito trânsito, mas nem por isso menos perigosa.
Também com um sorriso, o homem respondeu que ao contrário, ele é quem deveria atravessá-la se assim quisesse. Afinal uma criança pequenina e indefesa para os perigos de uma cidade, era corre um risco de morte muito grande se exposta aquele trânsito do local, intenso quando no horário comercial até mesmo para os adultos e acostumados.
Ficou preocupado. Então, segurou-a pela mão, atravessaram rapidamente as duas pistas, e já seguros do outro lado, no calçadão, antes dos jardins em frente ao shopping, perguntou onde os pais dela poderiam ser encontrados. Ela não respondeu, mas olhou-o nos fundos dos olhos. E naquele momento ele sentiu um mal estar estranho, um vazio na alma. Entendeu logo que não havia ninguém próximo que pudesse se responsabilizar por ela, ou o pior; todos eram ninguéns na vida daquela criança, ela era definitivamente uma criança abandonada.
A imagem ficou congelada no coração, e o pensamento cravado na alma daquele homem que sem largá-la da mão seguiu levando-a por entre os jardins.
Sem notar, o tempo passara rápido. Faltavam somente alguns minutos para o início do horário comercial e as lojas ainda encontravam-se fechadas, mas funcionários e os primeiros clientes aguardavam aglomerados em frente da entrada principal do grande prédio. Foram se aproximando também, lentamente, ele e aquele símbolo do abandono e do descaso. Chamaram logo a atenção.
Sob alguns olhares desdenhados, sentaram-se num dos bancos de granito lavrado espalhados entre os jardins. Esperaram ali, afastados o suficiente dos olhares daquelas gentes.
A menina emudecera novamente, parecia estranhamente acuada frente à situação. Perguntou então a ela o que estava havendo, por que estava tremendo, se não havia vento nem estava frio. Muda estava, muda ficou. Quando as portas começaram a abrirem-se, levantou-se rápido e tentou levá-la junto, mas ela estancou no meio do caminho quando viu para onde ele ia levá-la, e antes que ele pedisse uma explicação daquele medo, puxava-o para a direção contrária, pedindo que se afastassem dali. As lágrimas escorrendo pelo rostinho, e a voz misturada com o choro, dizia que não podia entrar lá por que os moços de preto ralham com ela, e que na última vez eles a botaram para fora a segurando pelas orelhas e que doeu muito. Uma indignação tomou conta do velho homem, por causa daquela covardia feita com uma criança.
Tranqüilizou-a, dizendo que agora entrariam juntos e que ninguém de lá ia fazer mais nada disso com ela. Ele não deixaria, prometeu. Ela abraçou a perna dele e com um aceno de cabeça concordou.
Entrando pelo corredor de mármore polido, seguiram, quando o homem assustou-se com u’a mão lhe tocando o ombro. Era uma grande amiga, aliás, umas das convivas da sua lista para o jantar. Uma mulher de meia idade, linda, além disso, sempre prestativa, de um coração doce. Beijaram-se no rosto e abraçaram-se carinhosamente. A amiga apontou para a menina com um olhar interrogativo. Explicou rapidamente, e logo dizendo que foi providencial aquele encontro, pois havia a boa intenção dele de querer cuidar daquela criança mesmo que nunca tivesse cuidado de uma antes, ainda mais uma menina. Naquela situação, pediu então que o ajudasse. Agradeceria eternamente por tudo que ela pudesse fazer, pois, apesar de ser o filho mais velho de uma família de muitos irmãos e irmãs, na prática , já não se lembrava mais desses cuidados materiais.
Prontamente ela disse que sim, pegou-a nos braços, caminharam juntos, adentraram pelas alamedas do shopping. Com o conhecimento e amizades que tinha ali tudo ia correm bem. A amiga confessou que já tinha umas idéias na cabeça, que não tinha filhos, mas um instinto maternal apurado e naquele momento gostaria de dar dignidade aquela criança, capaz até de tentar uma adoção. Andando e relacionando as providências,
que; de imediato a criança precisava de um belo de um banho, alimentação, roupas novas, corte e penteado dos cabelos.
O homem ficou atônito e ao mesmo tempo feliz com a rapidez da coordenação das primeiras necessidades, e agradeceu por tudo que ela pudesse fazer, pois, apesar de filho mais velho de numa família de muitos irmãos, na prática, já não se lembrava mais desses cuidados materiais, sempre tivera a ajuda de todos.
E assim ela fez; primeiro sentaram-se numa lanchonete, depois entraram numa loja infantil fizeram as compras necessárias e seguiram os três para a casa. Lá lhe deram banho, vestiu-a e calçou-a. Enquanto isso conversavam.
A menina; surpresa, sorridente, calma e calada. Mas precisavam saber mais um pouco da vida de rua daquele pequeno ser. Não inquiriram logo, antes, ligaram para um juiz amigo para um aconselhamento. Assim foi feito. Enquanto a mulher ouvia as recomendações, reparou que a menina não largava uma pequena sacolinha de feltro com um cordão para fechamento, servia de alça para pendurar no braço, tinha a estampa de uma marca de bebida forte, provavelmente pega no lixo. Pediu para ver o que tinha dentro, ela não facilitou, mas com muito tato conseguiu pegar. Verificaram que dentro tinha apenas um gargalo quebrado de garrafa. Acharam estranho e perguntaram para quê ela guardava aquilo, por ser muito perigoso, podia corta-se, deveria jogar fora.
Então veio a assombrosa explicação. Disse que ganhou da outra menina que morreu. Os meninos que moravam com a menina na praça, na briga, bateram nela com uma pedra por causa da droga. Tinha medo de eles fazerem o mesmo com ela. Tinha que ficar com caco de vidro para quando os meninos da praça quisessem pegá-la. ‘Era pra se defender’, para cortar eles. Seguiu falando; que cortou um garoto grande quando ele rasgou a roupa dela e queria fazer maldade com ela. Ele só não fez por que o moço cabeludo e a moça bonita o assustaram. Do moço não se lembrava muito, estava escuro, mas a moça era bonita, engraçada. Ela andava, mas não tinha os pés, era uma fumacinha no lugar deles.
Os amigos com os rostos apoiados nas mãos, atentos ao relato, que segue: disse que antes deles irem embora, puseram a mão na cabeça dela e prometeram que nunca mais ninguém ia machucá-la. Que eles iam protegê-la para sempre. Depois disso a luz sumiu e eles também.
Os amigos se entreolharam, estavam chorando. O homem ficou curioso e insistiu mais um pouco; queria saber como era essa gente, se eram parecidos com alguém que ela conhecia ou tinha visto. Como estavam vestidos. E a menina respondeu que não os conhecia, mas eles estavam vestidos com uma luz. Sorrindo e apontando para a mulher, disse que achava que a moça era muito parecida com a amiga dele. A mulher tomou a menina pelas mãos e prometeu que ia tomar conta dela até saber o que poderia ser feito definitivamente para adotá-la.
Nisso o celular toca. Era o amigo juiz, tranqüilizando-a, tratando-se quem era, dava a guarda temporária da menina até que fossem completadas as investigações.
Os amigos decidiram assim; que a menina fosse ajudada pelos dois, e fazia questão das duas estarem também presentes na festa logo mais a noite. A mulher prometeu levá-la, e aproveitou para perguntar se ele precisava de alguma ajuda, pois, perdera muito tempo com toda aquela situação. Respondeu que não, que tudo estava sob controle, e sorriu. Apenas quis confirmar o sobrenome dela para gravar na plaqueta da mesa, tantos anos, e só sabia que se chamava Rita. Ela então completou; de Cássia. Repetiu; Rita de Cássia é o meu nome. E você; dirigindo o olhar para o amigo, só conheço-o pelo apelido, duas simples consoantes. Sorrindo para ela, respondeu que um dia saberia. E sumiu na luz.


(texto aprovado que concorreu em Literatura, no 11° Concurso Talentos da Maturidade 2009, promovido pelo Grupo Santander Brasil)