quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O MAR ESTÁ PRA PEIXE, FELIZ ANO NOVO

Zero hora, três minutos, quinze segundos. Acabara de consultar o meu relógio de pulso no primeiro dia do ano de uma madrugada quente e céu estrelado. Ainda ouviam-se os estrondos dos fogos de artifícios vindo do outro lado da baía, em Copacabana, sons bem próximos a tiros distantes de uma artilharia de obuses. E bem ouvidos daqui, das praias de Niterói, de onde se tem a melhor vista do litoral sul da cidade do Rio de Janeiro.Talvez os únicos contrariados a todo o evidente burburinho fossem somente os ancestrais dos indígenas nos sítios arqueológicos, existentes nesse perímetro da praia, catalogados e já estudados, mas desprotegidos pelo governo. Tive o sentimento que suas almas pairavam sobre suas covas, cavadas nos sambaquis de areia, assistindo a sua última morada sendo profanada.Mas voltando à festa; pois o espetáculo era... Espetacular!
Logo me ambientei, não podia ser diferente, afinal era réveillon, a primeira grande festa do ano.

Desci as escadas do deck, atravessei com dificuldade a areia entre as pessoas, em grupos adorando os orixás, abraçados, casais de lábios colados em longos beijos, até que consegui aproximar-me da água, morna e mansa, deixei que as leves ondas molhassem meus pés, dizem que é bom no primeiro dia do ano. Ali parado, fiquei observando o mar enfeitado por muitas flores brancas entremeadas com amarelas, vermelhas e rosas. Cada cor representando uma direção, agradecimento, um pedido, um desejo. Flores jogadas em oferenda a Grande Mãe D’Água que também agradecida mantinha-as no marulhar das ondas, num efeito misterioso e bonito de se ver.

Subitamente, trazidos por uma onda um pouco mais forte, fui surpreendido saltitando aos meus pés, um enorme cardume. Pequenos peixes prateados davam a ilusão de que a areia estava em movimento. Ajudado pela criançada que fizeram a maior farra, consegui devolve-los todos para o mar, vivos.Instintivamente olhei novamente para o meu relógio, eram cinco e tal. Os minutos e os segundos ficaram fora do meu foco de visão, turvo pelo gás, matéria volátil desprendida do líquido dourado que havia na minha garrafa, e que pendente, jazia clara, translúcida e vazia juntamente com meu braço adormecido.Só ficou a certeza de uma coisa. Dizem que peixe é sinal de fartura, e eles vieram a mim no primeiro dia. Devolvi-os ao habitat porque quero sim, fartura. Mas uma fartura viva, para mim e para todos.


ANTOLOGIA DE CONTOS FANTÁSTICOS -14° Vol.Poema: “O mar está pra peixe, feliz Ano Novo”07/2008 - CBJE

terça-feira, 23 de setembro de 2008

(SOB A) LUZ DA LANTERNA

Solitário, tendo como extensão do seu corpo apenas a sua velha motocicleta Honda Custon ano noventa e cinco. Com ela deslizava no trecho do vão central da ponte, há setenta metros de altura, e na velocidade máxima permitida de oitenta quilômetros por hora, assim dava para observar lá embaixo a água do mar; mexida, suja e fétida, devido à putrefação dos manguezais próximos, fedor trazido pelo vento tépido e constante do mar. No mesmo instante no meio da baía, navegando vagarosamente, visualizara um velho barco rebocador, que, no esforço de aprumar um cargueiro em direção a barra aspergia pelos retornos dos motores mal regulados; vapor e uma fumaça negra obtida da queima do combustível, provavelmente adulterado, quase o envolvendo a cada aceleração, o que o fazia desaparecer alguns instantes. Mas lá ia ele, seguindo imponente singrando na água amarronzada e deixando um rastro de espuma espessa, derivada de um misto de óleos, algas mortas, gigogas e lixo.

No começo da subida da serra, de súbito, uma impaciência, uma angústia, o frescor no rosto, e o cheiro dos eucaliptos plantados na beira da estrada, disfarçava um pouco aqueles sentimentos, pois se fazia encher os pulmões de ar, qualidade “made in” país tropical. O sol foi esfriando-se vagarosamente também, e escondendo-se rápido no poente. E assim o dia passou despercebido. Tinha nascido com uma manhã clara e com céu limpo até o meio dia, mas repentinamente acinzentou depois se cobriu de nuvens negras que misturadas aos resquícios de vermelho do sol transformava-se numa coloração sombria, meio suja, tons sobre tons, num dégradé fúnebre. O tempo fechou em trevas combinando com a solidão da viagem. A escuridão se fez mais cedo, abraçou a noite sem que se notasse e um começo de chuva fria começara cair molhando a rua, que revestida de paralelepípedos. Pedras que umedecidas tornam-se muito escorregadias, causando um desconforto na pilotagem. O desconforto também era grande para o corpo, pois o frio e a chuva enfraqueciam o poder de aquecimento da roupa interna, a externa, de couro estava encharcada. Mesmo assim seguiu um pouco mais à frente, parando debaixo de uma frondosa amendoeira, estacionou a velha máquina, seu bem de estimação, uma guerreira. Apeou. O frio tinha se estabelecido por completo na serra, uma sensação perto do abaixo de zero grau, dava para sentir na alma, doía até os ossos.


Então, caminhou lentamente sem direção específica, procurava e esperava encontrar uma pousada, que fosse simples, mas aquecida e o mais rápido possível para o repouso do corpo, em frangalhos. Quando de repente, sentiu estar sendo seguido, ouviu passos não muito claramente, parecia vindo de baixo dos pés, isso mesmo do chão. Olhando a volta, também não viu ninguém, aliás, nada denunciava um espreitar de quem quer que fosse. Sozinho, com a imaginação flutuando, pensou; não há porque um descontrole emocional, mas o suor fluía a cada passo, e a cada outro que dava aumentava a sensação de estar sendo seguido, e o fez caminhar mais rápido. Afastou-se da calçada, passou a caminhar pela sarjeta, logo a seguir o medo o levou para o meio da rua, afastava-se cada vez mais da parte habitada. A iluminação da rua por ter lâmpadas de baixo lux não se propagava, e também por causa do nevoeiro e da chuva fina que não parava, dificultando a visibilidade, e por isso, não notara que já pisava na lama.


O trecho de rua calçada terminara lá atrás, o que a tornava mais escura, mais feia e lúgubre. Tinha as pernas desobedientes, empacaram num cruzamento, próximo de uma obra abandonada, parecia o fim do trajeto, cavaletes atravessados avisavam a proibição de passar. Diante do impasse, olhou para esquina, tentando encontrar um abrigo. E sob aquela iluminação fraca de cidade de interior notou que uma tampa de bueiro abria-se lentamente, estático, viu aquelas mãos pálidas, magras e envelhecidas empurrando a pesada tampa de ferro fundido, e de lá surgiu um vulto, vestido de uma roupagem negra e em desalinho, como se tivesse nascendo do chão, parecia levitar. De congelar. De paralisar mesmo. Mas num passe de mágica, quebrou-se toda essa imagem aterrorizante, um foco de luz de lanterna entrou pela retina quebrando o terror instalado na escuridão da noite. Foi quase uma tapa na cara. Em seguida, uma voz arrastada ofereceu ajuda.


- Está perdido? Precisa de ajuda? (tosse)O vulto se fez gente, era um velho funcionário municipal do departamento de águas e esgotos, e também vigia da cidade, que depois de uma inspeção noturna das galerias, saiu para fazer a sua ronda pela periferia. O motoqueiro fez o sinal da cruz e agradeceu por ser ele aquela aparição. Uma boa companhia, um amigo que fez-lo voltar à realidade. Respirou fundo, foi sendo possuído lentamente por um calor no corpo e um rubor nas faces. E da garganta ressequida pelo frio, e pela respiração antes ofegante, ouviu-se uma estridente gargalhada.
em: ANTOLOGIAS DE CONTOS FANTÁSTICOS - Vol. 17 - Câmara Brasileira de Jovens Escritores 10/2008

PAPOS E COISAS DE BOTEQUIM - VII – FIM INUSITADO




- Comigo é foda... quando eu ganho uma parada eu pago a rodada.

- Chope pra todo mundo. – E uma cachaça e um conhaque pra aqueles dois ali, amigos do Vininho.

(aplausos) Tantos e ensurdecedores, mas que foram logo cortados pelos gritos e pelas tapas que o Cadinho dava nos dois rapazes.

- Vocês são uns ingratos, eu tiro os dois lá da roça, dou casa comida, escola, mulheres gostosas, e vocês me apunhalam pelas costas. – Que porra de cheque é esse daquele pé de chinelo babaca morto lá na esquina. – Seus bundas moles! – Vocês dois estão querendo me passar pra trás é?

- Nada disso padrinho! Foi sua mulher que pediu pra gente tentar cobrar dele, pra ela. – Ela disse que o senhor meu padrinho... Deu o cheque pra ela.

- Vaca! Ela ta me roubando! Vou ter que fazer um churrasco dessa vaca safada!

- Faz isso não padrinho!

- Faz isso não por quê? – Estão comendo ela?

- Deus nos livre padrinho!

- Mas vão comer a partir de hoje - Vão lá fora e tragam essa vaca até aqui. – Hoje eu acabo com tudo isso!

E lá foram os dois capachos. No demoraram nem cinco minutos, trouxeram-na quase que arrastada. O Cadinho ali no centro do salão, com a mão na cintura, prostrado, os olhos esbugalhados de ódio, foi logo ordenando:

- Tirem toda a roupa dela. – Tudo. - A calcinha também.

- Mas padrinho... Isso não!

- Calem essas bocas e façam o que eu estou mandando.

Quando iam começar a despi-la, ela afastou-os com as duas mãos, e começou a despir-se lentamente, tirou primeiro o curto vestido de malha branca, peça que jogou sobre uma das cadeiras. O que se viu não era um corpo, e sim um lindo monumento cor de bronze com um metro e oitenta de altura mais ou menos.

Estávamos diante de uma bela escultura seminua, de coxas torneadas, quadris volumosos, mas não exagerados, nádegas lustrosas, firmes e sem marcas de biquíni denunciando ali a prática do banho de sol de corpo inteiro, sem acessórios.

Daquele rosto com um ar debochado que exibiu quando entrou a primeira vez no bar, somente traços. O semblante agora era de desolação e talvez um pouco de vergonha, o que não acredito, já que outrora, antes de ser prostituta e dançarina erótica, fez filmes pornôs e apresentações de sexo explícito em boates prive. Semi ou nua, para ela devia ser mera formalidade ou não. Mesmo assim, com uma das mãos, ela tentava tapar a boceta e com a outra, tentava desvencilha-se do soutien, aliás, pequeníssimo em proporção ao volume dos seios; fartos, duros e aparentemente sem estrias. Continuou calçada com a sandália de salto plataforma, e isso deu uma nuance sexy na situação. Ficou ali de pé, de frente pra todos, que de mudos, mudos ficaram. Quem conhecia a fama do Cadinho, nem se atrevia a babar, engolia a saliva, e com aquela visão extraordinária iam acabar se afogando. Ela quebrou o silencia.

- O que é que eu faço agora seu filho da puta.

A tapa foi tão covarde e tão bruta, que ouve um esboço de reação de alguns. Mas aí... O Cadinho já estava perto do balcão e das duas 9 mm, Com o impacto a mulher caiu há uns três metros de distância e descomposta, pondo à mostra a sua mais íntima parte corpórea, carnuda e depilada em forma de coração. Os sobrinhos correram para ajudá-la a levantar-se. Enquanto isso, o Cadinho vociferava:

- Alguém aqui já bateu em mulher? (acendeu um charuto) [silencio]– Já vi que ninguém.

– E apanhar, alguém já apanhou? [silêncio] – Sei... Ninguém apanhou.

- Pois então eu vou confessar uma coisa aqui; estamos bebendo juntos, somos um bando de amigos e entre amigos a gente pode falar o que bem quiser porra. Eu amei essa desgraçada desde guando ela não era nada
até minutos atrás... Pensam o quê; ela era uma trombadinha viciada, eu tinha vinte e cinco anos, meus negócios; prósperos, tirei-a da rua, mandei-a pra escola e dei-lhe educação. Aprendeu o suficiente pra se virar sozinha, mas sabem o que ela fez: merda outra vez, se meteu com quem não prestava, prostituiu-se. Aí larguei pra lá.

- Quando um belo dia aparece meu segurança o Marcão caveira, segurando pelo braço uma morenaça dizendo que ela tinha dito que era minha afilhada... Eu não quis saber desse negócio de afilhada não meus irmãos... Quando eu saquei aquele mulherão; foi paixão a primeira vista... E ela disse que foi assim também. Aí... foi sopa com mel.

- Mas já viram né, durou pouco, porque essa safada me sacaneou legal. E não precisava, ela nunca pedia nada, mas eu sempre dava, porque esse negócio de dar jóias, roupas, carro, academia e cirurgia plástica... Isso não é nada pra mim. De uns tempos pra cá eu estava desconfiado, pois começou a me pedir muito. Ela pensava que eu não sabia. Aquele babaca tombou por causa dela. Vocês lembram que ela fez até uma cena aqui dentro entre os dois, tudo pra disfarçar. Mas essa cadela safada era amante daquele pé de chinelo, e por cima teve a petulância de me roubar pra dar pra ele. Eu criei uma cobra dentro da minha casa... E cobra criada é perigosa, dá muito bote. A gente corta a cabeça pra ela não morder.

- O quê você vai fazer comigo Cadinho.

- Vem cá! Deite-se aqui na mesa.

Ela levantou-se. E já sem pudor nenhum, mostrou-se toda. Deitou-se na mesa como ele tinha pedido. Ele alisou-lhe os cabelos, a face ferida, ela afastou a mão dele como se tivesse a incomodando por causa do dolorido. Olharam-se. Ele pediu a um garçom que estava próximo a porta, que a fechasse. Ninguém mais podia entrar. O que foi atendido. Abriu a braguilha da calça, e sem despir-se a possuiu ali em cima da mesa.
Ela fez bem o papel, entregou-se totalmente, gemeu, gritou, fez carinho, pediu mais... Mas não teve. Ele afastou-se, foi até o balcão, pegou uma pistola e aproximou-se da mesa. Ela, do jeito que ele a deixou quando se afastou, ficou. Exposta, e feliz, virou a cabeça em direção a ele e balbuciou:

- Cadinho pra quê essa arma... – Não faça nenhuma besteira.

- Eu jurei que seria o último, que filho da puta nenhum levaria minha mulher pra cama antes da minha morte. Eu fiz melhor; comi-a na mesa.

Com essa declaração, bebeu o último gole, caminhou em direção a porta, saiu, parou na beira da calçada, recostou-se num tronco de amendoeira. Meteu o cano da pistola na boca e atirou.
Os blocos passavam ao lado do corpo cantando ao som da batucada. Poucos paravam, ninguém chorava. Era Carnaval.

PAPOS E COISA DE BOTEQUIM – VI - O ARRENEGO


- O que é que ta pegando ô chefia?

Respondeu o tal truculento das condecorações.

- O caso é o seguinte Doutor, nós abordamos esses dois indivíduos, e ao conferirmos as suas identificações, projetou-se ao chão esse cheque vencido e esse cartão de visitas. O cheque nós já constatamos que o mesmo foi emitido pelo camelô que foi baleado há pouco na esquina, o cartão nós ainda não averiguamos.

- Me dê aqui esse cartão. (guardou no bolso). – E tira essas algemas dos garotos.

O juiz adiantou-se, pediu ao garçom mais próximo que arranjasse uns guardanapos limpos e um pouco de água morna, isso na tentativa de ajudar os rapazes, já que as algemas por terem ficado apertadas demais, feriram-lhes os pulsos. Mas essa boa ação não foi muito bem vista pelos policias que retrucaram aos gritos.

- Mas que palhaçada é essa ô velhote. Ta querendo ficar no lugar deles.

- Cadinho... (lamentou o juiz) e aí vai ficar assim?

- Vai não!

- Ô chefia. Pega leve seja mais macio ta sabendo. Peça desculpas ao velhote, pois ele tem idade pra ser seu pai.

- Tem, mas não é. E eu já tinha o mandado sumir daqui um tempão. Não sei por que voltou!

- Então eu vou lhe dizer ô safado! (isso já com uma pistola 9 mm em cada mão)

- Esse velhote aqui é o meu progenitor, sacou. Hei! Não olha pro outro lado não – Quando eu falar com você seu merda, você tem que me olhar na cara – E tem mais! – Afinal! O que vieram fazer aqui, se essas paradas não são da jurisdição de vocês, heim!

- Olha aqui Dr.

- Doutor é o caralho!

- Ta bom... Ta bom, Seu Cadinho... minhas desculpas! - Tudo isso não passa de um mal entendido.

- Nós estamos aqui no cumprimento do dever. - Recebemos ordens superiores.

- Tai! Seu bando de merdas! - Não quero saber de mais nada!

- Meu pai foi sacaneado! - Meu lugar foi sacaneado! - To me sentindo sacaneado!

(aos gritos) - E já to ficando puto com vocês! – Não quero escutar nenhuma explicação.

– Vocês não estão nem merecendo mais sair daqui como chegaram. - Com esses peitos de pombos inchados de arrogância... – Ta no ponto é de ir pro “micro ondas”.

- Mas eu vou quebrar o galho de vocês. – Prometo que terão vida longa... se nunca mais voltarem aqui.

Aquele bando de policiais parrudos não deu nem mais um pio. Entraram no camburão que partiu acelerado, sumindo na primeira esquina. Cadinho ajeitou novamente a camisa, caminhou até o balcão e anunciou:

PAPOS COISA DE BOTEQUIM – V – A TRUCULÊNCIA

De posse dos documentos, o policial que conferia as identificações deixou cair uma folha de cheque e um cartão de visita que estava junto aos documentos, e curiosamente, um dos revistados tentou escondê-lo, pôs o pé em cima e tentou arrastá-lo para si. Uma tentativa de evitar algum tipo de flagrante. Foi quando o segundo policial entrou em ação.

Sacou a pistola do coldre, e de arma em punho apontada para baixo, aproximou-se e ordenou que os dois pusessem as mãos na cabeça e ficasse de frente para o balcão e com as pernas afastadas. O rapaz que tinha tentado esconder o cheque com o pé, bem que ensaiou argumentar alguma coisa. Isso fez com que o policial aproximasse, encostando-se de propósito no traseiro dele, e por trás do seu pescoço, murmurou alguma coisa. O cara ficou incomodado e respondeu qualquer coisa contrariando sobremaneira o carrancudo homem da lei. Algo muito grave. Acho que foi um erro; pois em represália tomou uma estocada na costela com a coronha da pistola. Chegou a ajoelhar-se. Deve ter doído.

Durante, e até mesmo antes da cena grotesca se desenrolar, ouviu-se no salão um zum zum zum de reprovação daquela barbaridade. O da farda olhou para trás e com o canto da boca espumando avisou:

- Ninguém queira bancar o “salvador da pátria”. – Preguem esses rabos na cadeira se não sobra pra vocês!

E continuou ordenando para que ninguém saísse, pois todos seriam revistados.

Os dois amigos se entreolharam, sacudiram os ombros, mas, fazer o quê, mesmo inconformados com aquela situação, ficaram, afinal estavam em igualdade de condições com todos os outros freqüentadores. Menos com os caras da lei. Claro, estavam armados e desalmados.

Nisso os outros dois outros policiais que estavam lá fora guardando a porta, entraram. Um era ainda mais carrancudo do que o que estava com a arma em punho, aquele que tinha cutucado o rapaz. Tinha três divisas de sargento cuspidas na ombreira, era um policial condecorado, uns botons coloridos presos no lado do bolso de peito da jaqueta denunciavam sua superioridade de mando. Uma daquelas honrarias devia ser de “excelência em arrogância a civis” isso pra não dizer “truculência generalizada”. Logo na primeira intervenção dele sentimos que ele era de truculência mesmo. E foi logo dando provas disso.

- Tem algum repórter, advogado ou jornalista aqui presente.

Alguns segundos, e levantou-se um homem de certa idade, cabelos grisalhos, (mais para branco total), dizendo que era Juiz.
O que se ouviu a seguir deu para todos ficarem boquiabertos, com a empáfia do sujeito de farda.

- Alguém por acaso me ouviu falar; de Juiz não sei de onde? – Não! – Então pra que essa palhaçada vovô. - Pode sair pra não mijar nas calças! – Saí, saí debandar!

E nisso, o amigo do Silveira já estava ficando impaciente. Soube-se que o homem é aparentemente pacato, aparentemente, mas na verdade é uma bomba pronta pra detonar, e ele como jornalista não se conformava com aquela situação. Infelizmente vivia-se numa época em que a maldade e a arrogância andavam fardadas, independente da cor delas, e se com ou sem divisas ou condecorações, então nem se fala.

Mas o Silveira adiantou-se.

- Saraiva fica na sua, você é turista... Quando te pedirem o documento, dê uma identificação que não seja a profissional, diga que é aposentado em viagem, mostre a passagem da Vasp e pronto. – Sei lá o que esses filhos da puta estão querendo!

- É você tem razão. – Já entendi... Eles não querem nenhuma notícia caso haja por parte deles um ato mais desastroso.

- É isso aí querido amigo. – Tu sabes melhor do que eu como a coisa está aqui. - És jorna... turista (risos).

– Continuemos com nossa birita. - Se a policia está em cima é porque esses dois estão devendo.

Os dois rapazes já algemados estavam sendo levados para a viatura. Policiais e seus dois presos quase já saindo do estabelecimento; são cercados por uns oito indivíduos, todos, uns armários, os policiais não se intimidaram, sacaram as armas. Foi aí a grande surpresa. Surge do nada para apartar, quem?, o Juiz , ordenando todos baixarem as armas. Pedindo um momento que o filho dele queria dar uma palavrinha com as “autoridades”.

Pasmem. Dobrando a esquina surge aquela Ferrari vermelha, acelera até em frente ao bar. Pilotando está aquela mulata gostosa, e de lado do carona o Cadinho, ele mesmo, ele e sua loja de ouro pendurada pelo corpo. Sai e bate a porta do possante com raiva.

Na mulata notava-se algo estranho naquele rosto cor de chocolate. Prestando bem atenção, percebia-se o enorme hematoma no lado direito do rosto dela, e que ela tentava disfarçar jogando para frente o aplique de cabelos rastafári. O Cadinho em pé na calçada ajeitava a sua camisa maneira, estampada, colorida. Enquanto isso olhava para o grupo que o esperava na porta, ainda dentro do bar. Deu uma olhadela pra mulata e esbravejou:

- Vai sua puta! Tira a porra desse carro daqui. Espere-me ali mais à frente. Não quero que tu fiques aqui de bobeira e ganhes uma bala perdida nesta bunda mole. – Que é! Não fique me olhando. Vai logo porra!

Deu até pena... Mas do carro. Ela arrancou com ele arrastando de propósito as rodas no meio fio. No mínimo por isso, outro olho roxo. Bobagem! Ela está acostumada, gosta. Se for boa a mesada; o que são algumas porradas. O cadinho caminhou até a porta, e antes de subir os dois degraus fez a sua habitual saudação:

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

PAPOS E COISAS DE BOTEQUI -IV - O PARAIBINHA




No ir e vir de início de noite, vários transeuntes paravam no local, engrossavam a multidão de curiosos que se acotovelavam, queriam por que queriam chegar mais perto do morto. Ele, coberto com folhas de jornal, jornal do dia, exemplar cedido pelo jornaleiro, um velhinho italiano muito querido no bairro, era sobra de venda da sua banca, esta que ele mantém aberta dia e noite. Sua boa ação teve dupla serventia, ocultou respeitosamente o morto, e proporcionou para quem não havia adquirido o periódico, fazer a leitura das manchetes do dia, pois as desse crime, quem ali estava, presenciava e já se inteirava dos fatos, antes mesmo da notícia no dia seguinte, e sem os detalhes oficiais. Bastava-lhes um disse me disse qualquer para poder transmitir a notícia. Geralmente quando repassada, aumentada um ponto.

Rodeado já por uma densa multidão, o corpo na calçada, agora frio, sobre ele, ainda as mesmas folhas de jornal só que ligeiramente úmidas; não sei se molhadas pelos finos pingos de chuva vindos de nuvens passageiras, comuns nessa época, ou se pelos perdigotos especuladores, mestres em conjecturas do cotidiano. Se o assunto for morte então... São os piores tipos de curiosos, ficam ali em cima, não arredam pés, e cada um com sua versão: eu vi, mas estava de longe; acho que foi queima de arquivo, foi passional, dívida de jogo; vingança de corno; não, foi o tráfico; foi vagabunda. Estas; são apenas algumas das especulações, que até a chegada da polícia, essas versões triplicam. Imagine se o cara que ali jazia estivesse meio morto... Sairia correndo. Tem gente que chegara há trinta segundos atrás e já tinha uma história. Não saiu correndo porque estava mortinho da silva. Ele e o que restou da cabeça do infeliz, que pousada numa poça, que revelava quando o vento levantava parte do jornal que a cobria, um filete escuro de sangue escorrido, ainda meio líquido, um coágulo denso serpenteando, da calçada à sarjeta, e projetando-se ao breu, entre as frestas do ralo de um bueiro próximo. A vida indo pro ralo, e de lá não sei pra onde. Como o sistema de esgotamento de águas pluviais é antigo e em muitos bairros ainda mistura-se ao de esgoto, triste fim. Isto é: no fim a vida mistura-se à merda. Talvez não seja tão ruim assim, afinal; aqui se faz samba, poesia ou filosofia nem que se esteja com o pé na bosta.

A poeira estava quase assentada. Afastados do local, ouvia-se somente os lamentos dos amigos, que foram abafados pelas sirenes das viaturas das policias, civil, militar, resgate dos bombeiros. Logo atrás as dos profissionais da notícia; jornal, televisão, e de carros particulares juntando-se a turba de curiosos. Provocando na estreita rua um grande congestionamento. Incomum num bairro residencial.

Lá no bar, passadas as primeiras horas, e a nostalgia e a tristeza já haviam se dissipado, principalmente naqueles freqüentadores que não foram tomar conta do fato in loco, decerto, tomaram conhecimento por alto e continuaram bebendo e se divertindo, para eles era como se nada tivesse acontecido, segredo etílico mágico. Para os que eram do local; coisas corriqueiras, como os papos que rolam nos botequins.
Mas, nem todos estão prontos para uma tarde tão agitada. Havia um visitante visivelmente preocupado com os últimos acontecimentos, ele carioca, mas morando longe daqui muitos anos, sentiu a transformação da cidade. Acha-a agora violenta demais, aniquiladora das inspirações. Belezas retratadas com furos de bala, olhos marejados d’água e sangue. Maravilhosa mas com poesias moribundas. Coisas que estava fazendo ele não ter mais muita vontade de ficar.

- Já está ficando tarde Silveira, vamos indo! – A coisa aqui está esquentando!

- Calma meu amigo! – A noite ainda é uma criança! – Nosso papo está bom! Não se preocupe isso é coisa de botequim mesmo! - Vou pedir a última rodada e depois sim; a saideira. Vamos juntos e sem pressa porque não vai haver mais saraivada de nada por aqui. Riu gozando o amigo. E emendou logo com um pedido.

- Ô garçom...! Mais dois chopes e uma porção de azeitonas aqui pra mesa vinte e três e meio.

- (rindo) Que número doido é esse Silveira?

- Fica na tua Saraiva!

- Você não reparou que o paraibinha não grita o número da nossa mesa como fazem os outros garçons com as deles?

- É... Já havia reparado!

- Aqui estão quase todos bêbados. Mas imagine o garçom gritando pra cozinha... “Sai uma porção de lingüiça pra vinte e quatro. – Vinte e quatro não é “viado”, então; aqui só tem gozador, e se alguém fizer alguma piada, ele vai ficar é muito puto da vida. Pra dar uma porrada no cara não custa nada. – Na semana, passada um grupo de rapazes da faculdade vieram aqui, lotaram duas mesas, e um deles já com a cara cheia de caipirinha, reclamou ao Nicolau que o garçom estava dando preferência especial para a mesa vinte e quatro.

– Quem era o garçom?

- Vininho!

- Isto; o paraibinha, aí deu merda, pois ele foi até a mesa e disse para que eles pegassem leve (uma gíria), pois se eles ficassem bêbados, ele não poderia continuar a servi-los, é a Lei. E mais, que não havia necessidade de terem reclamado com o patrão, pois que manda nas minhas mesas sou eu.
- Aí, um deles teve a infelicidade de fazer uma gracinha: “olha aqui ô baixinho... reclamei sim, você só está servindo aquelas bichas”.

- Sabe qual era a mesa?

- Esta!

- Isso mesmo. E o garoto continuou: “porque essa preferência toda, tu é gay também ou só simpatizante”.
- Nada mais pode falar; levou um murro nos dentes Só de ver, deu-me um frio na espinha. (risos) Dos três arrancados, dois foram recuperados debaixo da mesa. O terceiro tinha sumido. - Mais tarde descobriu-se. O Vininho apareceu com a mão enfaixada e saiu para ser socorrido; o dente perdido ficara cravado entre os ossos dos dedos dele, um caso para emergência.

- Até hilário se não fosse trágico: ir pra emergência para extrair um dente da mão, (risos) já soube de cabelos na mão. (risos) Agora dente... primeira vez! (risos).

Novamente; os três tapinhas no microfone. Um dos integrantes do grupo, o com o cabelo descolorado, diz-se; oxigenado, anuncia que, para dar continuidade aos trabalhos da noite, iam apresentar ao público as passistas e também integrantes do coral. Foi chamando uma a uma. Eram três mulatas de fecharem o trânsito. Dignas de pupilas do Sargentelli. Se vivo certamente ele ia rebocá-las. Na movimentação de palco, os músicos faziam um fundo musical para o desfile das beldades, quando elas pararam de se requebrar, cada uma delas o fez em frente há um microfone, foi quando o grupo imprimiu uma batucada mais alta, reiniciando com um samba; e aí todos cantaram, com o contracanto feito pelas vozes maviosas das mulatas, enchendo o lugar de alegria:

Meu amor!

Quis plantar o meu amor
Dentro do coração dela
Ela então zombou de mim
Me esnobou disse já era

Esperei desse jardim
O surgir da flor mais bela
Que surpresa foi pra mim
Só nasceu capim canela

Só capim canela!
Só capim canela!
Que surpresa foi pra mim
Só nasceu capim canela

Não chorei quando senti
Meu amor rolar por terra
Tive então a decisão
De esquecer-me agora dela

E o jardim que era florido
Com as cores da aquarela
Destruído e sem amor
E cheio de capim canela

Só capim canela!
Só capim canela!
Destruído e sem amor
Encheu de capim canela

Não há dúvida que a letra da música era capciosa, pra divertir mesmo, não pretendiam incluí-la no CD. Especialmente, eles cantam-na apenas em suas apresentações em casas noturnas e bares, ambientes adultos.

Enquanto isso: em frente à porta de saída; param duas viaturas da polícia. Quatro policiais ficam lá fora, dois entram tirando o sossego de dois sujeitos que estavam sentados nas cadeiras do balcão. Um dos policiais se aproximou e pediu que eles apresentassem os documentos. O outro permaneceu afastado, mas com a mão no coldre.

PAPOS E COISAS DE BOTEQUIM - III - O PÉ DE CHINELO

Ela não conversou...
Jogou o porta-chaves na cara dele, acertou na testa.
Simultaneamente correu um filete de sangue que ele estancou comprimindo o local. Era um desses chaveiros tipo de motel, uma placa retangular de acrílico transparente com uma correntinha para prender a chave, e que tinha internamente visível o retrato dela.

Sorridente, ela pegou a bolsa de mão e saiu do mesmo jeito que entrou. Imponente. Chegando à porta de saída, botou a mão na cintura, olhou na direção dele e lançou-lhe um gesto obsceno com o dedo médio em riste.

E saiu rapidamente.

Parecia que tudo se resumiria naquilo. Mas repentinamente, ele levantou-se chutando a cadeira à sua frente, e em passos largos, foi atrás dela. Na sua passagem pelo corredor, o chão tremeu, o bar emudeceu, parecia que não havia uma alma viva. Previa-se sim, que algo ruim estava preste a acontecer.
Ninguém teve a curiosidade de ir para rua para ver o desfecho daquela briga.

E olha que normalmente o carioca adora assistir uma porrada na zona (briga na rua) que igual, estava para ser essa. De homem e mulher então; é mel na sopa.

E dessa vez, parecia que ia ser diferente, talvez por causa dos protagonistas, briga de cachorros grandes, gente da pesada. Não querem escândalo para não chamar a atenção, principalmente da polícia.

O ideal mesmo seria se a confusão acabasse longe, pois se ali fosse, próximo ao bar, ia acabar com a alegria da rapaziada.

Com a confusão ninguém viu que o malandro pé de chinelo tinha saído pela lateral, isto porque, o bar fica situado numa esquina. E mais uma vez ele saiu sem pagar o que havia consumido, deu outro calote.
Alheios aos acontecimentos, o quinteto continuava no pagode. Alguns freqüentadores tinham afastado algumas mesas e cadeiras para o canto, isto com o consentimento do gerente, O Nicolau. Um misto de segurança, leão de chácara, agenciador de garotas e não sei mais lá o que. Um puto.
Gordo e alto aparência conhecida como armário, forte. Mais um puto. Ele, por causa da sua corpulência, caminha com dificuldade entre mesas cumprimentando os mais assíduos. Detalhe; copo de chope sempre cheio na mão. Numa parada aqui outra ali, pega um palitinho vai filando tira gostos nas mesas visitadas. O pessoal gosta, sentem-se prestigiados. E não deixa de ser. Afinal, ele é uma personalidade no bairro. O bar é um point, recebe visita de atores, artistas, turistas, juízes afamados, políticos importantes. Até o governador já tinha passado por aqui, mas lá nos tempos de campanha eleitoral. E nessas oportunidades, Nicolau, sempre na fita. Aparecendo nas fotos abraçados, e abraçando. Está tudo documentado. Ele pede as cópias, manda moldurar e sai pendurando pelas paredes do estabelecimento.

Todos já tinham se esquecido da mulata, do fanchone dela, e até da Ferrari...

Parecia vir de uns cem metros de distância, estampidos, foram dois tiros, que ecoaram. Todos saem do bar e olham na direção prevista, não vêem nada.
Uns dois ou três freqüentadores antigos deixam suas mesas, vão também até a rua, inquietos, caminham até a esquina, dobram-na, e no mesmo pé, voltam pálidos.

- Olhe minha gente, vocês não vão acreditar. O malandro pé de chinelo...
- Levou dois tiros na cara!

Silencio tumular.

Foi um abaixar de cabeça coletivo.

Uma engolida de saliva só.

Apesar de o morto ser um cara chato, mentiroso, meio metido a esperto, ufanava-se que bebia tudo e comia todas. No entanto tinha algumas coisas a seu favor; não mexia com droga, não roubava, era prestativo. Em quaisquer coisas, para qualquer um, e a qualquer hora. Com gente conhecida do bairro ou não, mantinha o maior respeito, principalmente com as mulheres e filhas dos amigos de bar.
Sim, mas não havia quem arriscasse por a mão no fogo quanto a esse grau de respeitabilidade.

Safado foi, safado é, safado será. Agora não é mais, está morto.

Ele era uma figura, nos dias de hoje, diria que irreal, ou talvez excêntrica. Um tipo de pessoa que merecia uma crônica, pois, mesmo sendo de pouca idade, tem história. Homem, branco, estatura mediana, cerca de 30 anos, filho único de mãe viva, ela aposentada, moravam juntos, ele trabalhava, era camelô. Por isso o apelido de malandro pé de chinelo.
“Malandro não trabalha, malandro é vagabundo”.

Mas ele gostava de se parecer assim.

O pai dele, morto num assalto ainda novo, era da boemia. Malandro daqueles tradicionais, da Praça Mauá, da Lapa, Praça Tiradentes. Um personagem disputado nas rodas tinha toda a essência de vagabundo, desde as vestimentas de linho branco, sapatos bicolor de couro, cabelos alourados bem cuidados, físico atlético, daquele que nos anos cinqüenta faziam suspirar, as virgens e as putas. Essas últimas tinham toda a sua atenção, elas o sustentavam.

Agora o filho morto, e também à bala.

PAPOS E COISAS DE BOTEQUI - II - A SAFADA


Mas toda sexta feira é assim, é de praxe. A tarde, a noite, e até a madrugada é longa.
Ouvem-se os primeiros acordes desconexos, afinavam os cavaquinhos, o violão, um tan..tan.. aqui e outro ali, o vocal dá duas porradinhas no microfone, solta o famoso; “alô... alô..., um, dois, três, testando”, pigarreia e começa a cantarolar, afinando a voz, acompanhado pelo quarteto.
O ritmo era inconfundível. Pagode partido alto. A batucada foi esquentando, fazendo fundo musical, o cantor empolgado, cumprimentou a platéia:
- Boa tarde para todos. Sejam bem-vindos ao Amigos da Vilas.
- O Grupo Pinima, agradece a oportunidade de poder apresentar algumas músicas que estamos preparando para o nosso próximo CD.
- Agora, um pagodinho só pra divertir vocês, segura aí! E soltou a voz.
Mas a letra... Meu Deus! A coisa das mais esdrúxula, porém, sem deixar de ser hilariante para qualquer um, ou para alguém que pudesse ouvir naquela tarde, batucada, depois de algumas tantas biritas.
ziriguidum paraquitum ta ta (introdução)
Se eu ser-se
Uma barbuleta doirada
Das zarza azulDa cor dos zargodão
Eu vivia dando vortas nas lâmpidas
Só pra dize, não sei cende
Um pau de fósfiro
Ardevolve amor
Ardevolve peste
Ardevolve o estandarte
Que eu ti déste
(estribilho)
Barbuleta não sou!
Se eu ser-se?
Barbuleta não sou!
Se eu ser-se?
Barbuleta não sou!
Se eu ser-se?
Encerrando a "música?" neste refrão os batuqueiros quase que incendiavam seus instrumentos; batendo os pandeiros, repenicando o tan tan, o bumbo, acompanhados pelas batidas das palmas das mãos dos presentes.
Aliás, era a parte mais vibrante da apresentação.
O andamento do ritmo era mesmo contagiante.
Numa mesa isolada, protegida por uma peça tipo biombo, estava sentado um indivíduo pesando cento e dez quilos aproximadamente, alto, cabelos avermelhado, vestindo calça de linho branco, sapato mocassin da mesma cor sem meias, e uma camisa aberta, vermelha, de algodão com estampas de orquídeas brancas.
Mas o que chamava a atenção mesmo era que ele usava; uma pulseira de duas voltas e um cordão de metro. As jóias, com no mínimo, um dedo de espessura, e um Rolex. Todas possivelmente de ouro. Um tremendo figuraça.
Se não fosse, mas certamente era, bicheiro, ou presidente de escola de samba, chefe de milícia, as três coisas, e mais algumas outras. Poder ele tinha. Só com um bom lastro, garante-se andar aqui com todas aquelas ostentações douradas.
Sereno como um tanque de guerra, mirou o Rolex, conferiu as horas, levantou-se, olhou sobre o biombo, e permaneceu de pé olhando fixo para além da porta de entrada. Simultaneamente todos também olharam para o outro lado da rua.Estava acontecendo uma metamorfose coletiva.
Após ter estacionado com dificuldade a sua Ferrari vermelha em frente ao bar, mas lá do outro lado da rua, a mulata veio chegando, sestrosa, como diz na roda; um tremendo avião. Cabelo rastafári, vestidinho de malha branca quase transparente, sandalhão plataforma prata. Um mulherão.Um malandro pé de chinelo prostrou-se no balcão, no corredor principal, onde ela passaria obrigatoriamente, ali ficaria para tirar uma onda com ela, dar-lhe uma cantada. E para chamar a atenção gritou com o garçom e pediu:- Bota um limão aí, parceiro! - Mas não me venha servir refresco não! - Eu quero limão fruta espremido na hora, cachaça, num copo de 200 ml e sem gelo.
Para os entendidos, é uma bebida de macho. Bom, sei lá! Já vi gay tomar essa “porra”, mas enfim; dizem que para uma coisa ou a outra tem que ser muito macho mesmo. Bom deixa pra lá.
Aquele monumento de mulher entrou no estabelecimento, de nariz arrebitado, comum do tipo, quando quer chamar atenção, e de se mostrar gostosa. Sem olhar para o lado foi passando quase que por cima das pernas dos seus admiradores.
O malandro, mais audacioso, tentou impedi-la de passar, e ela com um simples olhar de desdém, vociferou:
- Sai da frente seu merda!
– Cretino!
– Babaca!
Não deu tempo nem do sujeito abrir a boca. Desmoralização total, noventa e nove por cento dos “biriteiros” presentes ficaram às gargalhadas. Só quem não riu foi o mudinho vendedor ambulante sentado na soleira da porta, e o cafetão, espumando pela boca.
Ela continuou o seu desfile até o meio do recinto, aproximou-se do biombo e cumprimentou o indivíduo abraçando-o. Sentaram-se. Ela cruzando as pernas e deixando em exposição e sem cerimônia suas maravilhosas coxas.
Poucos minutos depois, notava-se que pela rudeza dos gestos, que a conversa dos dois não estava lá sendo muito amistosa. Ela levantou-se abruptamente, e com o dedo em riste abriu o verbo em alto e bom som:
- Qual é a tua Cadinho?
- Ta ficando sovina agora é?
Em tom mais alto ele respondeu, mas sem se levantar:
- Cala essa tua boca de vagabunda!
– Ta pensando que tu é o quê?
- Olha aqui Cadinho...
- Tu não pode me tratar assim não, ta!
- Não tratar assim o quê... - Tu agora é uma piscina doméstica, pouco uso e manutenção cara!- Não me encha mais o saco mulher!
– Quer dinheiro?
- Vai se virar!
- E tem mais, pare de ficar na minha cola!
– Vou acabar te dando uma coça pra aprender.
- Mas Cadinho meu amor... Você está nervoso!
- Nervoso é o cacete...
- Sai fora, e deixe aqui a chave do carro! – Não vou dormir em casa!
- Mas como é que eu vou voltar para casa?
- A pé!- É...
- Vai a pé... – Sua piranha safada!

PAPOS E COISAS DE BOTEQUIM - I - PRIMEIRO GOLE




- É aqui mano Saraiva, chegamos!
- Avenida 28 de setembro, hoje batizada de Boullevar 28 de Setembro, Vila Izabel, o lar doce lar de Noel Rosa, de muitos outros nomes que já se foram.
- Mas hoje temos Martinho, sua filha Mart’nália... – Olha, não vou listar!
- É muita gente boa!
- A Vila é quase um santuário do Samba - Um celeiro para muitos outros poetas e compositores que ainda hão de vir. - Neste local nascem sambas por segundo, bebem-se litros de chope, e cachaça. - Por fim, bebe-se mesmo é de tudo, e muito. - Os entendidos no assunto, dizem que o goró daqui é um combustível inspirador, necessário na criação de uma nova bossa, acabar uma letra, compor mais uma melodia, e também para varar a madrugada só pelo prazer da boemia. - É o oásis dos amantes da boa música, da bebedeira, e dos contempladores das mulheres. - Todas lindas, e bem dotadas, principalmente de bundas.

- Essa coisa das mulheres daqui terem as bundas grandes... - Será que é de tanto rebolar amigo Silveira?
- Talvez seja mano Saraiva... - Talvez seja!
- Mas, vamos adentrar! - Há uma mesinha livre ali no canto.

Entraram e sentaram-se. Estranhamente era a única mesa vazia. Talvez por ela ficar numa quina de parede, próxima ao início do corredor que segue para os mictórios. Não era ali um dos melhores lugares para se ficar. O vai e vem da porta de molas, impregnava o corredor com forte fedor de mijos. Também, com tanto chope servido...

Ficar ali era um pecado mortal para o olfato diante dos aromas emanados dos petiscos deliciosos, tira-gostos, que ainda bem quentes, passavam flutuando sobre as cabeças dos convivas, que eram levados pelos garçãos num vai e vem alucinante, driblando as mesas e cadeiras numa apresentação de equilibrismo fenomenal. Empunhavam numa das mãos duas, três e até quatro bandejas com os referidos petiscos. Iguarias pra nenhum bom degustador botar defeito. Na outra mão, sustentada pelos cinco dedos, uma única peça, uma bandeja de bom diâmetro, feita de aço polido com dúzias de copos tulipa, suados, cheios de chope dourado, enfeitados cada um com uma espessa camada de espuma cremosa e alva.

Pode ser muita pretensão, mas esta descrição da bebida, diriam que seria de Drummond. Se ele aqui freqüentasse é claro, mas não, ele era muito conservador.

Passou-se uns poucos minutos, e sem combinarem, acenaram e chamaram um atendente para a mesa, em alta voz e uníssona.

- Um garçom aqui, por favor!- Se não gritar não vem. Disse o anfitrião.No meio da multidão sob aquele burburinho, um garçom, acenou de volta:
- Já estou indo!
Em passos curtos e ligeiros, condição mínima para dar atendimento a todos os seus clientes, aproxima-se um paraibinha atarracado, cabelo grisalho, vestindo o habitual na sua função; jaqueta branca, calça preta e uma gravatinha borboleta pequena, bem de acordo com a sua estatura. Destacava-se dos demais exatamente por ser baixinho. Era o Severino. Já perto da mesa, apontou o dedo em direção dos recém chegados e sapecou:
- Já pediram?
Simultaneamente, jogou sobre o ombro o pano de limpeza, sacou do bolso o talonário, arrancou a tampa da esferográfica com os dentes. E...
- Ainda não! – respondeu a dupla.
- Vão querer o que?
- Peça Silveira! – Você já é conhecido da casa.
- Virino (apelido dele) eu e o meu amigo chegamos aqui mais sedentos do que esfomeados.
– Então pra começar, descole dois brancos, zero grau e na pressão. Uma porção de provolone, outra de azeitonas gregas e duas caipirinhas com pouco açúcar...
- Traga as caipirinhas primeiro!
- Só se for agora patrão! – Vou pedir a cozinha pra caprichar, numa deferência toda especial por vocês terem prestigiado, em particular esta minha mesinha.
Passou ligeiramente um pano na mesa, e saiu ele, rodopiando entre os móveis, equilibrando a bandeja. E aproveitando o caminho de volta para recolher das mesas os restos, os cinzeiros cheios de guimbas, copos e pratos usados, sumindo por trás do balcão em direção à cozinha.
Não se passaram dez minutos, e o Virino voltou. Pouco antes ele já tinha trazido as caipirinhas, deixou na mesa o que eles haviam pedido. E num breve cumprimento desejou:
- Bons apetites senhores... – Qualquer coisa, é só me chamar. - Divirtam-se!
Não tinha ele se afastado, e os copos de caipirinha já estavam abaixo da metade da dose. Eta sede. Virino não estava errado quando desejou que eles se divertissem.
Ao lado do balcão, uma movimentação chamava a atenção. Já havia uma mesa redonda arrumada com toalha branca, cinzeiros e copos emborcados. Os esperados iam chegando e sentando-se em volta da mesa. Eram cinco homens, cada um trazia na mão ou no ombro, bolsas; umas pequenas, duas bem grandes e outras nem tanto, agacharam-se, e abrindo-as rapidamente, foram aparecendo; cavaquinhos, violão, pandeiro, e outros instrumentos de percussão para uma perfeita batucada.
O mistério foi desvendado. Chegara o Grupo de Pagode. A tarde ia ser longa.