sexta-feira, 27 de novembro de 2009

EM NOME DE QUEM?

Era véspera de um dia qualquer. O homem acordou cedo como de costume, dessa vez não quis sair de carro, deixou-o na garage. Atravessou o longo corredor, cumprimentou o porteiro, e saiu caminhando pela larga calçada de pedras portuguesas, muito comuns nos bairros de classe média alta. Na mão, uma pequena lista de convidados começada desde a noite da festa do ano passado, e que completara na noite anterior quando ficou acordado até altas horas. Uma prática de muitos anos. Gosta de comemorar festivamente o dia do seu aniversário, e para isso, sempre partilhava um jantar com um grupo seleto de amigos. No bolso da bermuda, outra lista, do cardápio, nada sofisticado; vinho e produtos de época, por serem mais frescos. Seguia sem pressa, o sol ainda morno deixava a caminhada agradável àquela hora da manhã. Tinha todo o dia para os preparativos, desde as compras dos alimentos e bebidas, até a arrumação do ambiente e a decoração das mesas. E por ser um exímio cozinheiro, ia também preparar as comidas, fazer tudo sozinho aumentava o prazer dele servir.
Antes de atravessar a primeira pista da alameda que o levaria ao shopping foi surpreendido por uma pequena mão que o puxou por uma das pernas da sua bermuda de linho claro, que ao contato, ficou logo suja na bainha.
Além de maltrapilha, as mãozinhas sujas, assim como os pezinhos descalços igualmente muito sujos, eram de uma criança miúda, magérrima, mas com um rostinho angelical. Não conseguiu dar nem mais um passo. Por longos segundos custou até a dizer alguma coisa. Mas o silêncio foi quebrado pela menina, talvez com não mais que meia dúzia de aninhos, olhos vivos, porém tristonhos, disfarçados pelo sorriso sincero saído da sua pequena boca, e que exibia com a graça de toda criança banguela uma falha de dois dentinhos de leite recém caídos.
Ainda segurando a bermuda e olhando por cima dos ombrinhos, perguntou ao homem se precisava de ajuda para atravessar a avenida. Aliás, uma das mais movimentadas do bairro, e que por ainda ser muito cedo não havia muito trânsito, mas nem por isso menos perigosa.
Também com um sorriso, o homem respondeu que ao contrário, ele é quem deveria atravessá-la se assim quisesse. Afinal uma criança pequenina e indefesa para os perigos de uma cidade, era corre um risco de morte muito grande se exposta aquele trânsito do local, intenso quando no horário comercial até mesmo para os adultos e acostumados.
Ficou preocupado. Então, segurou-a pela mão, atravessaram rapidamente as duas pistas, e já seguros do outro lado, no calçadão, antes dos jardins em frente ao shopping, perguntou onde os pais dela poderiam ser encontrados. Ela não respondeu, mas olhou-o nos fundos dos olhos. E naquele momento ele sentiu um mal estar estranho, um vazio na alma. Entendeu logo que não havia ninguém próximo que pudesse se responsabilizar por ela, ou o pior; todos eram ninguéns na vida daquela criança, ela era definitivamente uma criança abandonada.
A imagem ficou congelada no coração, e o pensamento cravado na alma daquele homem que sem largá-la da mão seguiu levando-a por entre os jardins.
Sem notar, o tempo passara rápido. Faltavam somente alguns minutos para o início do horário comercial e as lojas ainda encontravam-se fechadas, mas funcionários e os primeiros clientes aguardavam aglomerados em frente da entrada principal do grande prédio. Foram se aproximando também, lentamente, ele e aquele símbolo do abandono e do descaso. Chamaram logo a atenção.
Sob alguns olhares desdenhados, sentaram-se num dos bancos de granito lavrado espalhados entre os jardins. Esperaram ali, afastados o suficiente dos olhares daquelas gentes.
A menina emudecera novamente, parecia estranhamente acuada frente à situação. Perguntou então a ela o que estava havendo, por que estava tremendo, se não havia vento nem estava frio. Muda estava, muda ficou. Quando as portas começaram a abrirem-se, levantou-se rápido e tentou levá-la junto, mas ela estancou no meio do caminho quando viu para onde ele ia levá-la, e antes que ele pedisse uma explicação daquele medo, puxava-o para a direção contrária, pedindo que se afastassem dali. As lágrimas escorrendo pelo rostinho, e a voz misturada com o choro, dizia que não podia entrar lá por que os moços de preto ralham com ela, e que na última vez eles a botaram para fora a segurando pelas orelhas e que doeu muito. Uma indignação tomou conta do velho homem, por causa daquela covardia feita com uma criança.
Tranqüilizou-a, dizendo que agora entrariam juntos e que ninguém de lá ia fazer mais nada disso com ela. Ele não deixaria, prometeu. Ela abraçou a perna dele e com um aceno de cabeça concordou.
Entrando pelo corredor de mármore polido, seguiram, quando o homem assustou-se com u’a mão lhe tocando o ombro. Era uma grande amiga, aliás, umas das convivas da sua lista para o jantar. Uma mulher de meia idade, linda, além disso, sempre prestativa, de um coração doce. Beijaram-se no rosto e abraçaram-se carinhosamente. A amiga apontou para a menina com um olhar interrogativo. Explicou rapidamente, e logo dizendo que foi providencial aquele encontro, pois havia a boa intenção dele de querer cuidar daquela criança mesmo que nunca tivesse cuidado de uma antes, ainda mais uma menina. Naquela situação, pediu então que o ajudasse. Agradeceria eternamente por tudo que ela pudesse fazer, pois, apesar de ser o filho mais velho de uma família de muitos irmãos e irmãs, na prática , já não se lembrava mais desses cuidados materiais.
Prontamente ela disse que sim, pegou-a nos braços, caminharam juntos, adentraram pelas alamedas do shopping. Com o conhecimento e amizades que tinha ali tudo ia correm bem. A amiga confessou que já tinha umas idéias na cabeça, que não tinha filhos, mas um instinto maternal apurado e naquele momento gostaria de dar dignidade aquela criança, capaz até de tentar uma adoção. Andando e relacionando as providências,
que; de imediato a criança precisava de um belo de um banho, alimentação, roupas novas, corte e penteado dos cabelos.
O homem ficou atônito e ao mesmo tempo feliz com a rapidez da coordenação das primeiras necessidades, e agradeceu por tudo que ela pudesse fazer, pois, apesar de filho mais velho de numa família de muitos irmãos, na prática, já não se lembrava mais desses cuidados materiais, sempre tivera a ajuda de todos.
E assim ela fez; primeiro sentaram-se numa lanchonete, depois entraram numa loja infantil fizeram as compras necessárias e seguiram os três para a casa. Lá lhe deram banho, vestiu-a e calçou-a. Enquanto isso conversavam.
A menina; surpresa, sorridente, calma e calada. Mas precisavam saber mais um pouco da vida de rua daquele pequeno ser. Não inquiriram logo, antes, ligaram para um juiz amigo para um aconselhamento. Assim foi feito. Enquanto a mulher ouvia as recomendações, reparou que a menina não largava uma pequena sacolinha de feltro com um cordão para fechamento, servia de alça para pendurar no braço, tinha a estampa de uma marca de bebida forte, provavelmente pega no lixo. Pediu para ver o que tinha dentro, ela não facilitou, mas com muito tato conseguiu pegar. Verificaram que dentro tinha apenas um gargalo quebrado de garrafa. Acharam estranho e perguntaram para quê ela guardava aquilo, por ser muito perigoso, podia corta-se, deveria jogar fora.
Então veio a assombrosa explicação. Disse que ganhou da outra menina que morreu. Os meninos que moravam com a menina na praça, na briga, bateram nela com uma pedra por causa da droga. Tinha medo de eles fazerem o mesmo com ela. Tinha que ficar com caco de vidro para quando os meninos da praça quisessem pegá-la. ‘Era pra se defender’, para cortar eles. Seguiu falando; que cortou um garoto grande quando ele rasgou a roupa dela e queria fazer maldade com ela. Ele só não fez por que o moço cabeludo e a moça bonita o assustaram. Do moço não se lembrava muito, estava escuro, mas a moça era bonita, engraçada. Ela andava, mas não tinha os pés, era uma fumacinha no lugar deles.
Os amigos com os rostos apoiados nas mãos, atentos ao relato, que segue: disse que antes deles irem embora, puseram a mão na cabeça dela e prometeram que nunca mais ninguém ia machucá-la. Que eles iam protegê-la para sempre. Depois disso a luz sumiu e eles também.
Os amigos se entreolharam, estavam chorando. O homem ficou curioso e insistiu mais um pouco; queria saber como era essa gente, se eram parecidos com alguém que ela conhecia ou tinha visto. Como estavam vestidos. E a menina respondeu que não os conhecia, mas eles estavam vestidos com uma luz. Sorrindo e apontando para a mulher, disse que achava que a moça era muito parecida com a amiga dele. A mulher tomou a menina pelas mãos e prometeu que ia tomar conta dela até saber o que poderia ser feito definitivamente para adotá-la.
Nisso o celular toca. Era o amigo juiz, tranqüilizando-a, tratando-se quem era, dava a guarda temporária da menina até que fossem completadas as investigações.
Os amigos decidiram assim; que a menina fosse ajudada pelos dois, e fazia questão das duas estarem também presentes na festa logo mais a noite. A mulher prometeu levá-la, e aproveitou para perguntar se ele precisava de alguma ajuda, pois, perdera muito tempo com toda aquela situação. Respondeu que não, que tudo estava sob controle, e sorriu. Apenas quis confirmar o sobrenome dela para gravar na plaqueta da mesa, tantos anos, e só sabia que se chamava Rita. Ela então completou; de Cássia. Repetiu; Rita de Cássia é o meu nome. E você; dirigindo o olhar para o amigo, só conheço-o pelo apelido, duas simples consoantes. Sorrindo para ela, respondeu que um dia saberia. E sumiu na luz.


(texto aprovado que concorreu em Literatura, no 11° Concurso Talentos da Maturidade 2009, promovido pelo Grupo Santander Brasil)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

CRACK




Sábado, 03h15min da madrugada, inverno Carioca 12°. Chuviscos finos bailam nos focos das lâmpadas alógena dos postes da avenida, como uma cortina de voil ao vento, num efeito de colorido da madrepérola.
Não havia previsão de uma mudança meteorológica, mas entrara uma frente fria repentinamente, pegando o pessoal da turma boêmia desprevenida. Sendo um deles, e o mais velho, tratei de partir mais cedo, e me pus a caminhar apressado antes que o tempo piorasse, pois há poucos dias acabara de me curar de uma influenza. E do que eu bem sei; cachaça nunca preveniu, muito menos afastou infecção.

Madrugada fria e chuvosa, os taxis sumiram das ruas, e àquelas horas, os poucos que circulam, só fazem ponto, próximos aos locais com maior concentração de bares por causa da ‘Lei seca’, baixada pelo governo para reduzir os alarmantes índices de acidentes de trânsito cujos resultados têm consequências graves, muitas delas irreparáveis, quando vidas são ceifadas, na maioria jovens alcoolizados.

Por esse lado, concordo, mas ela se tornou famigerada. Para que seja cumprida, há ‘blitz’ policiais, verdadeiras manobras de guerra são montadas nas ruas e avenidas, e os condutores dos veículos são abordados e submetidos ao teste do bafômetro. Se constatado alcoolismo, é delito grave: sujeito a multa, perda de pontos na carta de habilitação, e até apreensão do veículo e prisão no caso de embriaguês total.

Morando perto e com tempo bom, sempre volto a pé, aproveito para curar um pouco o porre. Já os outros frequentadores não têm essa vantagem, são de outros bairros e até mesmo de outras cidades, são obrigados a voltarem de carro ou moto, mas não se arriscam mais, pois a multa é pesada.

Não segui pela avenida, que é mais ampla e iluminada, e também mais policiada, mas por lá, parece que o vento sopra mais frio, e a distância parece com mais compridez. Optei por desviar a minha caminhada pelas ruas transversais, mais estreitas e sombrias, mas com uma vantagem; as marquises dos prédios comerciais protegiam-me da chuva que parecia ter aumentado. Quando bêbados, perdemos um pouco a noção de distância, mas faltava pouco, acho, para chegar ao meu destino, me sentar na espreguiçadeira e encerrar a noite, ou começar o dia, com um drink. Se é que mais uma vez iam me deixar entrar.

Mas um fato veio transfigurar completamente o meu cenário. Um gemido, lento e fraco, vindo de um beco. Na verdade um pequeno interstício entre dois prédios, próximo de um amontoado de caixas de papelão desmontadas, postas ali para serem recolhidas pelo catador de reciclados. Tentei aguçar os meus sentidos, novamente ouvi, e vi um corpo caído no chão frio, um menino, nascido não mais que há oito anos. Tinha o rosto coberto por uma camiseta de marca, ensanguentada. Aproximei-me cautelosamente; podia ser uma cilada de trombadinhas, não felizmente. Era grave, ele exalava um fedor horrível, além da falta de asseio de vários dias, havia defecado e urinado nas próprias roupas, é o que normalmente acontece nos espasmos e convulsões dos drogados. Matei logo a charada. Dava pena de ver.

Com cuidado, descobri-lhe o rosto. Espantado com a minha presença, não conseguindo se mover começou a gritar, com os olhos esbugalhados de terror, como se tido uma visão demoníaca:

(filho-da-puta...
não me foda mais...
não me bata mais...
não quero mais...
não vou ‘fumá’ mais essa porra)

Havia um nó na minha garganta, mas tentei acalmá-lo, dizendo que não ia lhe fazer mal, que ia ajudá-lo. Perguntei então o que ele queria que eu fizesse.

‘vai lá e traz a minha mãe’

Disse-lhe que sim, que traria a mãe dele, mas ele tinha que me contar o que tinha acontecido.

(o cara me falou
que se eu desse pra ele
ele me dava uma grana
eu disse que não
pediu pra eu tomar conta
dos bagulhos dele
ai ele foi embora
deixou umas pedras
eu ‘tava’ ‘cherado’ de cola
aí fumei o crack
ele voltou e
me encheu de porrada
ele me comeu
ele me arrombou moço)

Além de fezes, urina, o short estava encharcado também por causa do sangue. Naquele momento só as palavras me incomodavam.
Sem que ele percebesse, acionara a Emergência Corpo de Bombeiro, ele precisava de urgentes cuidados médicos.
Continuei.
E depois?
Ele chorando.

(fumei outra pedra.
o fogaréu acendeu
dentro dos meus olhos
era o inferno
‘nimim’.
o céu rasgou
o sangue escorria
na minha cabeça
quando a lua rolou
esmagou as estrelinhas
que caiam
‘quinem’ areia)
...
(moço... me ajuda
estou sem pernas
quero ‘vumitar’)

Nesse instante; uma luz vermelha intermitente invadiu o espaço, eu estava anestesiado, nem notara a chegada do socorro. Nos segundos seguintes, enquanto relatava aos paramédicos o que tinha conseguido na conversa com o menino, do estupro, e da minha desconfiança de overdose de crack, os enfermeiros auxiliares já haviam descartado as roupas fétidas do corpo dele, e faziam um asseio preliminar com soro e vaselina líquida. Envolveram-no com um material aluminizado. Passaram com a maca por mim, mas ele estava inconsciente, nem pude perguntar-lhe o nome. Nem sei se era importante fazê-lo.

Não me lembro quanto tempos mais, fiquei ali depois que o som da sirene sumiu dos meus ouvidos.
Amanhecera e a chuva havia cessado, e não tomara o último drink onde planejara. Mas o primeiro do dia sabia onde ia ser.
Comprei o matutino, pus debaixo do braço e voltei pro bar.
Há duas semanas a minha mulher não me dirige a palavra. Ela acha que eu estava com as putas. Foda-se. É muita história pra uma madrugada só. Ela não vai acreditar mesmo.

terça-feira, 16 de junho de 2009

TÃO FRIO QUANTO A BRISA


Farto dos dias nefastos isentos de poesia, o velho homem sentou-se na cadeira espreguiçadeira no quintal, ao ar livre, num atalho disfarçado de sossego, a fim de enganar o corpo cansado, do calor que ainda fazia até àquelas horas da noite, e cochilou.
Ao lado dele sobre a mesinha auxiliar de jardim, seus vícios proibidos; uma garrafa de bebida forte consumida até a metade, com o copo emborcado no gargalo. Metade de uma cigarrilha apagada no cinzeiro, a última, das três adquiridas diariamente, e nessa quantidade, para evitar o abuso do fumo.
Dos lícitos; o rosto do seu amor, sua amada, retratada na fotografia sépia, posta no velho portarretratos de metal zinabrado, com o mesmo sorriso maroto e olhar seguidor congelado, direcionado para dentro da saudade. Aquela mesma saudade desenhada desde que o deixou.
Juntos; sua caneta dormitava próxima ao fiel caderno de anotações, sonolento, de folhas embeiçadas, capa desbotada, lombada e seixas carcomidas pelo tempo de manuseio diuturno.
A madrugada engoliu a noite, e a brisa folheava-o aleatoriamente, descortinando os segredos ali apostos, incitando os sonhos que rondavam o sono que lhe chegara muito profundamente.
Seguia a vida a mercê das forças da natureza, do momento, indivisível, toda a sua trajetória sendo desvendada e espalhada pelo chão desordenadamente, naquele instante único e derradeiro.
Relíquias guardadas em cada página, tesouros que seus dedos cristalizaram em versos, poesias.
Como se pedras preciosas fossem, assim como; seus poemas de amor, que não vai precisar mais guardar.
Seu corpo jaz tão frio quanto à brisa.
O poeta está morto, mas deixa imaculada a sua poesia.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

A ENTREVISTA


Falava ao telefone, dava para ouvi-lo além da porta de vidro. Vociferava como se discordando de alguém do outro lado da linha. A campainha da porta principal soou duas vezes antes dele desligar, o que fez apondo abruptamente o fone na base. A demora não levou mais que um minuto para que o homem fosse atender.Quando ele abriu a porta, à sua frente estava uma jovem mulher. Melhor dizendo; uma menina maquiada de mulher. Vestia um tailleur marinho, sapatos de verniz com salto Luiz XV que a fazia mais alta e mais velha. Ela achava que precisava parecer assim para impressionar na questão da altura, talvez por pensar que ser alta era sinônimo de adulta. Da blusa de voil bege decotada, uma leve abertura, provocada por uma nesga, dobra natural do modelo, que permitia ver frações dos pequenos seios, firmes, com aquele frescor normal da tenra idade, pousados num colo perfumado de pele alva e aveludada.Antes que dissessem alguma coisa um ao outro; o que seria normal entre desconhecidos, por exemplo: um simples cumprimento de recepção; um “bom dia” ou, “como vai”, ou “que deseja”. Mas não, os dois ficaram ali, em pé na porta, olhando-se profundamente, absortos por alguns segundos antes de quaisquer outras palavras.O telefone tocou novamente. Assustaram-se como se despertados de uma viagem em outra dimensão.Ele correu até a escrivaninha, mas deixando a porta aberta. Também com ela plantada na soleira, não poderia fechá-la mesmo, a não ser que a deixasse lá fora com a porta no nariz. Isso não faria mesmo.Atendeu a ligação, mas atento aos movimentos dela. Olhando em direção da moça através da porta de vidro refratário que separava o seu gabinete da ante-sala, e a sala de recepção, acenou, gesticulou com a mão, e pediu para que ela entrasse e sentasse. O que ela fez sem cerimônia. Sentou-se numa Recamier Capitonê estofada de veludo grená, cruzou as pernas elegantemente, torneadas e sensuais, valorizadas por meias finas preta suavemente rendadas.Ele a olhou sobre os ombros tampou o fone com uma das mãos, baixou o tom da voz, e pediu para que ela o aguardasse uns minutos mais até que concluísse o atendimento. Ela concordou sacudindo a cabeça afirmativamente.Enquanto o esperava percorria com o olhar tudo a sua volta, fazendo uma expedição aos detalhes do local. Apesar das instalações serem modernas, o mobiliário de estilo clássico, impressionava o brilho pelo excelente estado de conservação; mesas com pés torneados, cadeiras estofadas de veludo, relógio carrilhão, abajures com bases sendo de imagens de querubins em mármore de Carrara, tudo demonstrando muito bom gosto, mesmo que conflitantes com os acessórios modernos como; computadores com monitores de LCD, telão para vídeo conferências, frigobar de aço inox, e mais outros petrechos para conforto dos usuários no âmbito comercial. Ela estava extasiada com que vira, fazia planos, caso tudo desse certo. Afinal não dependia de ela ser aceita para o serviço. Aliás, mesmo sabendo estar habilitada para qualquer função, não fazia preferência de cargo. Apesar de nova na idade, parecia ter bastante experiência ou treinamento qualificado. Ali, naquele átimo da espera ela arrumava os pensamentos preparando-se para as ações a fim de agradar o seu entrevistador.Ele olhava-a com encantamento. Ela já havia percebido, demonstrando ser também experiente em sedução. Mulher do tipo independente, disposta de querer predeterminado.Para ele, só um estranho sentir, pois era um homem maduro, vivido, descompromissado e acostumado a entrevistar muitas mulheres; profissionais ou não, novas, velhas, e de várias classes sociais. Mas, nesta havia algo que lhe chamava a atenção, uma atração quase que sobrenatural.Terminada a ligação, dirigiu-se à moça. Ela levantou-se. Num gesto rápido, pediu que ela permanecesse sentada e que ficasse a vontade. Puxou uma cadeira, sentou-se frente a ela. Tomou posse de uma pequena prancheta, presa nela, uma pequena ficha e duas folhas de papel pautado. Sem olhá-la, perguntou-lhe o nome, quem havia feito a indicação do escritório dele... Isto é; o profissionalismo havia tomado conta da situação depois do espasmo emocional acontecido com os dois naquele encontro inesperado. Com a mesma seriedade ela atendeu-o. Abriu a bolsa, pegou o cartão da pessoa que a tinha indicado. Era um amigo dele.Com respostas precisas, foi respondendo as perguntas formuladas. Enquanto transcorria a entrevista, notava-se um semblante de satisfação em ambos. Arguida sobre sua qualificação profissional, ela fez demorar alguns segundos, e mesmo assim não o satisfez com a resposta. Ao invés, ela esticou o braço e entregou-lhe um envelope branco grande. Detalhe; suavemente perfumado. Era o Currículo. Ele pegou-o e disse para surpresa dela, que guardaria para análise posterior, o que queria mesmo de imediato era passar logo para as informações sobre as tarefas pertinentes as atividades do seu escritório.Adiantar-se assim antes dela ser dada como aprovada da entrevista, era um procedimento totalmente equivocado. Mas procedeu dessa forma. Afinal era o dono do negócio. E isso como se sabe, é fundamental para o fim de qualquer entrevista.Antes da resposta, torceu o tronco para o lado esquerdo e pôs a prancheta em cima da mesa, mas ficou com uma das duas folhas na mão, e em silêncio, leu atentamente suas anotações.Antes do final da leitura, ainda com a cabeça baixa, olhou-a por baixo das sobrancelhas, deu um ligeiro sorriso, pegou a segunda folha, e após um suspiro, sacou do bolso único da camisa branca de linho, sua caneta tinteiro de madrepérola com pena de ouro, e rubricou-as. Fez uma leve pausa e informou-a da aprovação para o cargo. Deu-lhes os parabéns, e agradeceu por ela ter vindo. Continuaram sentados, e já numa conversa informal, confessou que tinha entrevistado mais de dez candidatas naquele dia, algumas até com mais experiência de trabalho, mas não com os conhecimentos gerais e a desenvoltura dela, isso era preponderantemente importante para o sucesso da escolha. Precisava de alguém com liderança, e boa aparência sim, mas que ela tinha ultrapassado as suas expectativas. Porque afinal, no convívio diário, para lidar com ele eram necessários alguns predicados acima dos normais.Mas uma vez ela surpreendeu-o. Perguntou por onde ele queria que ela começasse.Ele sorriu. Repousou a mão no queixo, olhou-a, e sorriu novamente, e perguntou onde ela gostaria de almoçar. Com a experiência abrangente dela, respondeu-lhe que; para ela, para não quebrar-lhe a rotina, seria importante ser onde ele estava acostumado a sentir-se bem. Nada mais falou, nem ele. Que ligou para o manobrista, pedindo que trouxesse o carro urgente. Um sedam preto de luxo, do ano. Saíram do elevador de mãos dadas, entraram no carro, e rumaram para a casa dele. Duas semanas depois, voltaram de um cruzeiro pelo litoral, presente de lua-de-mel, e recomeçaram logo as atividades do; “ELE&ELA Escritório Matrimonial”.Depois do casamento a empresa prosperou por força da propaganda mais que convincente feita com personagens verdadeiros, e com um novo slogan: “Nossa empresa não contrata dublês.

domingo, 4 de janeiro de 2009

...SEGUNDOS NOVOS


...SEGUNDOS NOVOS
Num átimo, o primeiro passo da madrugada do novo ano, e lá estava o homem sentado à beira mar, só, absorto, remoendo os últimos maus acontecimentos do ano findo. Os dele, comum a todos, foram consumados. Pendente apenas um, do corpo. Por ora, a fé e a figa à prova desde já. Dos seus entes a sua volta, dos poucos amigos onde o abraço alcança, e com os outros não tão, mas sentidos próximos como se, passaram sem pendências. Assim soube, motivo suficiente para sobressaírem às tênues rugas de expressão provocadas pelo modesto sorriso.No olhar, uma espécie de beijo muxoxo, alegria distraída, camuflada na brancura da espuma misturada a areia que lhe beijava os pés. Num vai e vem, vinham juntos certa nostalgia de esperança, e os restos das oferendas devolvidas pelo mar trazidas pelas ondas cálidas e calmas de verão. Certo de que estava só, chorou, e o sal das suas lágrimas misturou-se ao mar, e assim, escondeu os vestígios daquele seu momento de emoção.E ali permaneceu ele, sentado à beira mar assistindo de longe toda essa coisa grandiosa que é o adeus do ano velho e a chegada do feliz ano novo. Manifestação contagiante, explosão do povo, euforia, festa que ele não conseguia naquele momento nem absorver, nem dividir plenamente... Os olhos ainda mareados, mas o pensar aguçado. Fulgia no seu rosto o colorido dos fogos de artifícios vindos do céu, saídos do mar, e as perguntas começavam a brotar com o mesmo fulgor:Tantas luzes assim... Será que realmente é para iluminar o ser, como propagam por aí? Ou a abundância de clarão é para cegar-nos das verdades que desfilam frente aos nossos olhos? Estrondos, ecos, estampidos, inimagináveis ruídos... Será para acordar-nos para uma realidade que teimamos não aceitar, ou é para que não escutemos os lamentos daqueles sem voz, ou para abafar os nossos clamores, nossos próprios ais? Será que há outro interesse além do cumprimento ao evento cultural de festejar? Ou há interesses outros com o intuito de propaganda pra si; governos, igrejas, instituições?...No chão, toneladas de garrafas vazias, vestígio incontestável do uso indiscriminado da droga lícita, cujos conteúdos foram consumidos para adormecer a razão, em prol da emoção da contagem regressiva até a transição atingindo milhões de memórias. E dependendo da resistência de cada indivíduo; efeito duradouro em alguns segundos, minutos, horas ou para sempre nos excessos.Os olhos, esses sim, mesmo sonolentos, fixos, testemunhando os fatos, fotografando qual uma lente grande angular todo aquele povo, lá, extasiados, hipnotizados, boquiaberto engolindo ar, esquecendo pelo menos por alguns minutos; das suas doenças, da fome, da guerra, das prisões injustas, do abandono das crianças e idosos... O ano começou, são segundos novos, e nem tudo há de começar cinza como esse pensamento enraizado, havia naquele homem ao menos uma coisa bem vista e colorida para começar... Vestia uma bela camisa de chita, estampada de flores tropicais.Há previsões dos especialistas em clima mundial que 2009 será um ano quentíssimo.Bom!... O tecido é de puro algodão. Portanto; conveniente. Os fogos cessaram. Então o homem levantou-se, destampou sua garrafa, e pelo gargalo mesmo, sorveu de uma vez só mais da metade da sua droga, e com ela, afogou a pouca alegria que tinha, e junto, a tristeza instalada que não resistiu, dormiu com ele na areia.