sexta-feira, 10 de julho de 2009

CRACK




Sábado, 03h15min da madrugada, inverno Carioca 12°. Chuviscos finos bailam nos focos das lâmpadas alógena dos postes da avenida, como uma cortina de voil ao vento, num efeito de colorido da madrepérola.
Não havia previsão de uma mudança meteorológica, mas entrara uma frente fria repentinamente, pegando o pessoal da turma boêmia desprevenida. Sendo um deles, e o mais velho, tratei de partir mais cedo, e me pus a caminhar apressado antes que o tempo piorasse, pois há poucos dias acabara de me curar de uma influenza. E do que eu bem sei; cachaça nunca preveniu, muito menos afastou infecção.

Madrugada fria e chuvosa, os taxis sumiram das ruas, e àquelas horas, os poucos que circulam, só fazem ponto, próximos aos locais com maior concentração de bares por causa da ‘Lei seca’, baixada pelo governo para reduzir os alarmantes índices de acidentes de trânsito cujos resultados têm consequências graves, muitas delas irreparáveis, quando vidas são ceifadas, na maioria jovens alcoolizados.

Por esse lado, concordo, mas ela se tornou famigerada. Para que seja cumprida, há ‘blitz’ policiais, verdadeiras manobras de guerra são montadas nas ruas e avenidas, e os condutores dos veículos são abordados e submetidos ao teste do bafômetro. Se constatado alcoolismo, é delito grave: sujeito a multa, perda de pontos na carta de habilitação, e até apreensão do veículo e prisão no caso de embriaguês total.

Morando perto e com tempo bom, sempre volto a pé, aproveito para curar um pouco o porre. Já os outros frequentadores não têm essa vantagem, são de outros bairros e até mesmo de outras cidades, são obrigados a voltarem de carro ou moto, mas não se arriscam mais, pois a multa é pesada.

Não segui pela avenida, que é mais ampla e iluminada, e também mais policiada, mas por lá, parece que o vento sopra mais frio, e a distância parece com mais compridez. Optei por desviar a minha caminhada pelas ruas transversais, mais estreitas e sombrias, mas com uma vantagem; as marquises dos prédios comerciais protegiam-me da chuva que parecia ter aumentado. Quando bêbados, perdemos um pouco a noção de distância, mas faltava pouco, acho, para chegar ao meu destino, me sentar na espreguiçadeira e encerrar a noite, ou começar o dia, com um drink. Se é que mais uma vez iam me deixar entrar.

Mas um fato veio transfigurar completamente o meu cenário. Um gemido, lento e fraco, vindo de um beco. Na verdade um pequeno interstício entre dois prédios, próximo de um amontoado de caixas de papelão desmontadas, postas ali para serem recolhidas pelo catador de reciclados. Tentei aguçar os meus sentidos, novamente ouvi, e vi um corpo caído no chão frio, um menino, nascido não mais que há oito anos. Tinha o rosto coberto por uma camiseta de marca, ensanguentada. Aproximei-me cautelosamente; podia ser uma cilada de trombadinhas, não felizmente. Era grave, ele exalava um fedor horrível, além da falta de asseio de vários dias, havia defecado e urinado nas próprias roupas, é o que normalmente acontece nos espasmos e convulsões dos drogados. Matei logo a charada. Dava pena de ver.

Com cuidado, descobri-lhe o rosto. Espantado com a minha presença, não conseguindo se mover começou a gritar, com os olhos esbugalhados de terror, como se tido uma visão demoníaca:

(filho-da-puta...
não me foda mais...
não me bata mais...
não quero mais...
não vou ‘fumá’ mais essa porra)

Havia um nó na minha garganta, mas tentei acalmá-lo, dizendo que não ia lhe fazer mal, que ia ajudá-lo. Perguntei então o que ele queria que eu fizesse.

‘vai lá e traz a minha mãe’

Disse-lhe que sim, que traria a mãe dele, mas ele tinha que me contar o que tinha acontecido.

(o cara me falou
que se eu desse pra ele
ele me dava uma grana
eu disse que não
pediu pra eu tomar conta
dos bagulhos dele
ai ele foi embora
deixou umas pedras
eu ‘tava’ ‘cherado’ de cola
aí fumei o crack
ele voltou e
me encheu de porrada
ele me comeu
ele me arrombou moço)

Além de fezes, urina, o short estava encharcado também por causa do sangue. Naquele momento só as palavras me incomodavam.
Sem que ele percebesse, acionara a Emergência Corpo de Bombeiro, ele precisava de urgentes cuidados médicos.
Continuei.
E depois?
Ele chorando.

(fumei outra pedra.
o fogaréu acendeu
dentro dos meus olhos
era o inferno
‘nimim’.
o céu rasgou
o sangue escorria
na minha cabeça
quando a lua rolou
esmagou as estrelinhas
que caiam
‘quinem’ areia)
...
(moço... me ajuda
estou sem pernas
quero ‘vumitar’)

Nesse instante; uma luz vermelha intermitente invadiu o espaço, eu estava anestesiado, nem notara a chegada do socorro. Nos segundos seguintes, enquanto relatava aos paramédicos o que tinha conseguido na conversa com o menino, do estupro, e da minha desconfiança de overdose de crack, os enfermeiros auxiliares já haviam descartado as roupas fétidas do corpo dele, e faziam um asseio preliminar com soro e vaselina líquida. Envolveram-no com um material aluminizado. Passaram com a maca por mim, mas ele estava inconsciente, nem pude perguntar-lhe o nome. Nem sei se era importante fazê-lo.

Não me lembro quanto tempos mais, fiquei ali depois que o som da sirene sumiu dos meus ouvidos.
Amanhecera e a chuva havia cessado, e não tomara o último drink onde planejara. Mas o primeiro do dia sabia onde ia ser.
Comprei o matutino, pus debaixo do braço e voltei pro bar.
Há duas semanas a minha mulher não me dirige a palavra. Ela acha que eu estava com as putas. Foda-se. É muita história pra uma madrugada só. Ela não vai acreditar mesmo.

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