segunda-feira, 8 de setembro de 2008

PAPOS E COISAS DE BOTEQUIM - III - O PÉ DE CHINELO

Ela não conversou...
Jogou o porta-chaves na cara dele, acertou na testa.
Simultaneamente correu um filete de sangue que ele estancou comprimindo o local. Era um desses chaveiros tipo de motel, uma placa retangular de acrílico transparente com uma correntinha para prender a chave, e que tinha internamente visível o retrato dela.

Sorridente, ela pegou a bolsa de mão e saiu do mesmo jeito que entrou. Imponente. Chegando à porta de saída, botou a mão na cintura, olhou na direção dele e lançou-lhe um gesto obsceno com o dedo médio em riste.

E saiu rapidamente.

Parecia que tudo se resumiria naquilo. Mas repentinamente, ele levantou-se chutando a cadeira à sua frente, e em passos largos, foi atrás dela. Na sua passagem pelo corredor, o chão tremeu, o bar emudeceu, parecia que não havia uma alma viva. Previa-se sim, que algo ruim estava preste a acontecer.
Ninguém teve a curiosidade de ir para rua para ver o desfecho daquela briga.

E olha que normalmente o carioca adora assistir uma porrada na zona (briga na rua) que igual, estava para ser essa. De homem e mulher então; é mel na sopa.

E dessa vez, parecia que ia ser diferente, talvez por causa dos protagonistas, briga de cachorros grandes, gente da pesada. Não querem escândalo para não chamar a atenção, principalmente da polícia.

O ideal mesmo seria se a confusão acabasse longe, pois se ali fosse, próximo ao bar, ia acabar com a alegria da rapaziada.

Com a confusão ninguém viu que o malandro pé de chinelo tinha saído pela lateral, isto porque, o bar fica situado numa esquina. E mais uma vez ele saiu sem pagar o que havia consumido, deu outro calote.
Alheios aos acontecimentos, o quinteto continuava no pagode. Alguns freqüentadores tinham afastado algumas mesas e cadeiras para o canto, isto com o consentimento do gerente, O Nicolau. Um misto de segurança, leão de chácara, agenciador de garotas e não sei mais lá o que. Um puto.
Gordo e alto aparência conhecida como armário, forte. Mais um puto. Ele, por causa da sua corpulência, caminha com dificuldade entre mesas cumprimentando os mais assíduos. Detalhe; copo de chope sempre cheio na mão. Numa parada aqui outra ali, pega um palitinho vai filando tira gostos nas mesas visitadas. O pessoal gosta, sentem-se prestigiados. E não deixa de ser. Afinal, ele é uma personalidade no bairro. O bar é um point, recebe visita de atores, artistas, turistas, juízes afamados, políticos importantes. Até o governador já tinha passado por aqui, mas lá nos tempos de campanha eleitoral. E nessas oportunidades, Nicolau, sempre na fita. Aparecendo nas fotos abraçados, e abraçando. Está tudo documentado. Ele pede as cópias, manda moldurar e sai pendurando pelas paredes do estabelecimento.

Todos já tinham se esquecido da mulata, do fanchone dela, e até da Ferrari...

Parecia vir de uns cem metros de distância, estampidos, foram dois tiros, que ecoaram. Todos saem do bar e olham na direção prevista, não vêem nada.
Uns dois ou três freqüentadores antigos deixam suas mesas, vão também até a rua, inquietos, caminham até a esquina, dobram-na, e no mesmo pé, voltam pálidos.

- Olhe minha gente, vocês não vão acreditar. O malandro pé de chinelo...
- Levou dois tiros na cara!

Silencio tumular.

Foi um abaixar de cabeça coletivo.

Uma engolida de saliva só.

Apesar de o morto ser um cara chato, mentiroso, meio metido a esperto, ufanava-se que bebia tudo e comia todas. No entanto tinha algumas coisas a seu favor; não mexia com droga, não roubava, era prestativo. Em quaisquer coisas, para qualquer um, e a qualquer hora. Com gente conhecida do bairro ou não, mantinha o maior respeito, principalmente com as mulheres e filhas dos amigos de bar.
Sim, mas não havia quem arriscasse por a mão no fogo quanto a esse grau de respeitabilidade.

Safado foi, safado é, safado será. Agora não é mais, está morto.

Ele era uma figura, nos dias de hoje, diria que irreal, ou talvez excêntrica. Um tipo de pessoa que merecia uma crônica, pois, mesmo sendo de pouca idade, tem história. Homem, branco, estatura mediana, cerca de 30 anos, filho único de mãe viva, ela aposentada, moravam juntos, ele trabalhava, era camelô. Por isso o apelido de malandro pé de chinelo.
“Malandro não trabalha, malandro é vagabundo”.

Mas ele gostava de se parecer assim.

O pai dele, morto num assalto ainda novo, era da boemia. Malandro daqueles tradicionais, da Praça Mauá, da Lapa, Praça Tiradentes. Um personagem disputado nas rodas tinha toda a essência de vagabundo, desde as vestimentas de linho branco, sapatos bicolor de couro, cabelos alourados bem cuidados, físico atlético, daquele que nos anos cinqüenta faziam suspirar, as virgens e as putas. Essas últimas tinham toda a sua atenção, elas o sustentavam.

Agora o filho morto, e também à bala.

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