segunda-feira, 8 de setembro de 2008

PAPOS E COISAS DE BOTEQUI -IV - O PARAIBINHA




No ir e vir de início de noite, vários transeuntes paravam no local, engrossavam a multidão de curiosos que se acotovelavam, queriam por que queriam chegar mais perto do morto. Ele, coberto com folhas de jornal, jornal do dia, exemplar cedido pelo jornaleiro, um velhinho italiano muito querido no bairro, era sobra de venda da sua banca, esta que ele mantém aberta dia e noite. Sua boa ação teve dupla serventia, ocultou respeitosamente o morto, e proporcionou para quem não havia adquirido o periódico, fazer a leitura das manchetes do dia, pois as desse crime, quem ali estava, presenciava e já se inteirava dos fatos, antes mesmo da notícia no dia seguinte, e sem os detalhes oficiais. Bastava-lhes um disse me disse qualquer para poder transmitir a notícia. Geralmente quando repassada, aumentada um ponto.

Rodeado já por uma densa multidão, o corpo na calçada, agora frio, sobre ele, ainda as mesmas folhas de jornal só que ligeiramente úmidas; não sei se molhadas pelos finos pingos de chuva vindos de nuvens passageiras, comuns nessa época, ou se pelos perdigotos especuladores, mestres em conjecturas do cotidiano. Se o assunto for morte então... São os piores tipos de curiosos, ficam ali em cima, não arredam pés, e cada um com sua versão: eu vi, mas estava de longe; acho que foi queima de arquivo, foi passional, dívida de jogo; vingança de corno; não, foi o tráfico; foi vagabunda. Estas; são apenas algumas das especulações, que até a chegada da polícia, essas versões triplicam. Imagine se o cara que ali jazia estivesse meio morto... Sairia correndo. Tem gente que chegara há trinta segundos atrás e já tinha uma história. Não saiu correndo porque estava mortinho da silva. Ele e o que restou da cabeça do infeliz, que pousada numa poça, que revelava quando o vento levantava parte do jornal que a cobria, um filete escuro de sangue escorrido, ainda meio líquido, um coágulo denso serpenteando, da calçada à sarjeta, e projetando-se ao breu, entre as frestas do ralo de um bueiro próximo. A vida indo pro ralo, e de lá não sei pra onde. Como o sistema de esgotamento de águas pluviais é antigo e em muitos bairros ainda mistura-se ao de esgoto, triste fim. Isto é: no fim a vida mistura-se à merda. Talvez não seja tão ruim assim, afinal; aqui se faz samba, poesia ou filosofia nem que se esteja com o pé na bosta.

A poeira estava quase assentada. Afastados do local, ouvia-se somente os lamentos dos amigos, que foram abafados pelas sirenes das viaturas das policias, civil, militar, resgate dos bombeiros. Logo atrás as dos profissionais da notícia; jornal, televisão, e de carros particulares juntando-se a turba de curiosos. Provocando na estreita rua um grande congestionamento. Incomum num bairro residencial.

Lá no bar, passadas as primeiras horas, e a nostalgia e a tristeza já haviam se dissipado, principalmente naqueles freqüentadores que não foram tomar conta do fato in loco, decerto, tomaram conhecimento por alto e continuaram bebendo e se divertindo, para eles era como se nada tivesse acontecido, segredo etílico mágico. Para os que eram do local; coisas corriqueiras, como os papos que rolam nos botequins.
Mas, nem todos estão prontos para uma tarde tão agitada. Havia um visitante visivelmente preocupado com os últimos acontecimentos, ele carioca, mas morando longe daqui muitos anos, sentiu a transformação da cidade. Acha-a agora violenta demais, aniquiladora das inspirações. Belezas retratadas com furos de bala, olhos marejados d’água e sangue. Maravilhosa mas com poesias moribundas. Coisas que estava fazendo ele não ter mais muita vontade de ficar.

- Já está ficando tarde Silveira, vamos indo! – A coisa aqui está esquentando!

- Calma meu amigo! – A noite ainda é uma criança! – Nosso papo está bom! Não se preocupe isso é coisa de botequim mesmo! - Vou pedir a última rodada e depois sim; a saideira. Vamos juntos e sem pressa porque não vai haver mais saraivada de nada por aqui. Riu gozando o amigo. E emendou logo com um pedido.

- Ô garçom...! Mais dois chopes e uma porção de azeitonas aqui pra mesa vinte e três e meio.

- (rindo) Que número doido é esse Silveira?

- Fica na tua Saraiva!

- Você não reparou que o paraibinha não grita o número da nossa mesa como fazem os outros garçons com as deles?

- É... Já havia reparado!

- Aqui estão quase todos bêbados. Mas imagine o garçom gritando pra cozinha... “Sai uma porção de lingüiça pra vinte e quatro. – Vinte e quatro não é “viado”, então; aqui só tem gozador, e se alguém fizer alguma piada, ele vai ficar é muito puto da vida. Pra dar uma porrada no cara não custa nada. – Na semana, passada um grupo de rapazes da faculdade vieram aqui, lotaram duas mesas, e um deles já com a cara cheia de caipirinha, reclamou ao Nicolau que o garçom estava dando preferência especial para a mesa vinte e quatro.

– Quem era o garçom?

- Vininho!

- Isto; o paraibinha, aí deu merda, pois ele foi até a mesa e disse para que eles pegassem leve (uma gíria), pois se eles ficassem bêbados, ele não poderia continuar a servi-los, é a Lei. E mais, que não havia necessidade de terem reclamado com o patrão, pois que manda nas minhas mesas sou eu.
- Aí, um deles teve a infelicidade de fazer uma gracinha: “olha aqui ô baixinho... reclamei sim, você só está servindo aquelas bichas”.

- Sabe qual era a mesa?

- Esta!

- Isso mesmo. E o garoto continuou: “porque essa preferência toda, tu é gay também ou só simpatizante”.
- Nada mais pode falar; levou um murro nos dentes Só de ver, deu-me um frio na espinha. (risos) Dos três arrancados, dois foram recuperados debaixo da mesa. O terceiro tinha sumido. - Mais tarde descobriu-se. O Vininho apareceu com a mão enfaixada e saiu para ser socorrido; o dente perdido ficara cravado entre os ossos dos dedos dele, um caso para emergência.

- Até hilário se não fosse trágico: ir pra emergência para extrair um dente da mão, (risos) já soube de cabelos na mão. (risos) Agora dente... primeira vez! (risos).

Novamente; os três tapinhas no microfone. Um dos integrantes do grupo, o com o cabelo descolorado, diz-se; oxigenado, anuncia que, para dar continuidade aos trabalhos da noite, iam apresentar ao público as passistas e também integrantes do coral. Foi chamando uma a uma. Eram três mulatas de fecharem o trânsito. Dignas de pupilas do Sargentelli. Se vivo certamente ele ia rebocá-las. Na movimentação de palco, os músicos faziam um fundo musical para o desfile das beldades, quando elas pararam de se requebrar, cada uma delas o fez em frente há um microfone, foi quando o grupo imprimiu uma batucada mais alta, reiniciando com um samba; e aí todos cantaram, com o contracanto feito pelas vozes maviosas das mulatas, enchendo o lugar de alegria:

Meu amor!

Quis plantar o meu amor
Dentro do coração dela
Ela então zombou de mim
Me esnobou disse já era

Esperei desse jardim
O surgir da flor mais bela
Que surpresa foi pra mim
Só nasceu capim canela

Só capim canela!
Só capim canela!
Que surpresa foi pra mim
Só nasceu capim canela

Não chorei quando senti
Meu amor rolar por terra
Tive então a decisão
De esquecer-me agora dela

E o jardim que era florido
Com as cores da aquarela
Destruído e sem amor
E cheio de capim canela

Só capim canela!
Só capim canela!
Destruído e sem amor
Encheu de capim canela

Não há dúvida que a letra da música era capciosa, pra divertir mesmo, não pretendiam incluí-la no CD. Especialmente, eles cantam-na apenas em suas apresentações em casas noturnas e bares, ambientes adultos.

Enquanto isso: em frente à porta de saída; param duas viaturas da polícia. Quatro policiais ficam lá fora, dois entram tirando o sossego de dois sujeitos que estavam sentados nas cadeiras do balcão. Um dos policiais se aproximou e pediu que eles apresentassem os documentos. O outro permaneceu afastado, mas com a mão no coldre.

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