terça-feira, 26 de agosto de 2008

MEU PEDAÇO DE GUERRA

Passados pouco mais que alguns segundos os sentidos foram sendo restabelecidos, pois numa situação de guerra, só se pode ouvir o próprio silêncio e sentir o frio interior se estiver acordado, é a condição mínima para tentar manter-se vivo, a sobrevivência está no exercício peremptório das acuidades, sempre; não perdendo a fé, controlando o medo, e mantendo frieza nas ações, mesmo que o cheiro acre de sangue te leve ao vômito descontrolado enojado pelo convívio com corpos mutilados, misto de vísceras, ossos e lama, rostos transfigurados com estampas de horror e dor, daqueles que foram horas atrás homens fardados, combatentes garbosos, defensores da pátria e da bandeira, agora ali, meninos mortos, pintados de abandono num quadro fantasmagórico. O cérebro fervilhava em pensamentos anestesiados, tentava arranjar uma condição favorável para sairmos da trincheira túmulo, onde só ecoava o som de lamentos de dor dos meus companheiros abatidos. Dependíamos de uma ação da retaguarda, mas nossa artilharia jazia silenciosa, nem na hora do confronto principal ouviu-se um único tiro, nem também não houve nenhuma retaliação no cessar fogo temporário do inimigo, permaneciam silenciosas. Como gostaria de ter ouvido os tiros dos nossos obuses, mas dei-lhes crédito, algo de sério havia acontecido, lamentei, era de suma importância e eficaz para nossa retirada. Precisava de informações, estávamos sem comunicação, o telefonista jazia com furo na orelha, do outro lado da cabeça não havia rosto, enfim; eu não tinha aptidão para manusear o rádio, mas teria que tentar, nada mais podia ser feito na situação que eu e os outros companheiros encontrávamo-nos, afinal precisava de novas instruções de como chegar mais próximo dos alvos ou de uma retirada estratégica. Temia puxar para mim a responsabilidade para alguma ação imediata já que com o oficial morto a tropa carecia de comando. Continuei calado por alguns instantes enquanto isso se ouvia os estrondos, continuados e ensurdecedores, do fogo pesado do inimigo que estavam logo à frente, ouvíamos nitidamente o passar traçante dos projéteis sobre nossas cabeças, e nós aqui na linha de frente ainda não podíamos fazer nada, precisávamos da ajuda da retaguarda, éramos trinta, da tropa restava-nos para resistência pouco mais de onze aptos, os feridos eram incontáveis. Então, com a ajuda de mais quatro soldados num mutirão relâmpago, arrancávamos as identificações dos corpos, guardando-as nos bolsos da mochila de campanha, quando já preparávamos para a retirada numa decisão tomada sem anúncio, começara a chover torrencialmente, uma chuva gelada, encharcando nossos uniformes, e por causa do vento intermitente a sensação de frio era potenciada, e congelante, doía-nos até aos ossos, havia risco de hipotermia, perdíamos o senso de direção, agravada por causa de uma espécie de nevoeiro, mistura de chuva e fumaça de pólvora. Essa mudança meteorológica não me fez mudar de atitude, dei ordem a tropa para irmos em frente sob as minhas ordens, mas não foi possível avançar, onde estávamos, o antes era sabido ser uma trincheira natural na verdade é um regato, que de seco, começou a inundar-se rapidamente por causa do temporal, ao que aumentado o seu volume, veio trazendo os corpos boiando em suas águas sanguinolentas, pior, é que a força da correnteza nos arrastava para a direção contrária, isto é; em direção ao território ocupado pelo inimigo, neste momento já não mais tínhamos esperança de sobreviver.

Um comentário:

CONTEI POR AÍ, AQUI, E ALI disse...

Cherry Blossom disse...
Olá José
Ando encantada por cá! Li, li e reli e por fim me cansei de tanto rolar a página na tentativa de escolher onde postar o comentário.Gostei de tudo e de tanto que também nem sei o que dizer...Oras!..ahah (só eu mesma)
Bem, sendo assim, continuo encantada por aqui!
beijos
Cherry